O segundo disco de Guto Leite, Dez Canções Sem as Quais Você Não Poderá Viver Nem Mais um Segundo, poderia correr o risco da elaboração técnica prejudicar o fluxo natural da criação. Mas isso não acontece. Professor de Literatura Brasileira na UFRGS, ele é um poeta de sólidos recursos e um estudioso da canção. Lidando com música desde a adolescência, esperou bastante para se expor como compositor e cantor maduro – o primeiro álbum, Brique, é de 2015, aos 33 anos, 10 depois de concluir o curso de Linguística na Unicamp. Em Dez Canções..., Guto se diverte com uma espécie de voo de pássaro sobre variadas latitudes da música popular brasileira, sem nunca perder o rumo. Muito bem construídas, as letras são ora simples, ora surpreendentes, com inspiradas melodias e uma trama instrumental sofisticada e cumpridora.
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Na faixa de abertura, Guto se apresenta como um Dono de Brechó, canção de tons jazzy com sutilezas de valsa, o acordeom costurando tudo. A seguir, Triste avisa que guitarras distorcidas e espírito de rock não faltarão. Theo é uma marcha-rancho, e Oi, com a voz de Paula Mirhan, um chote meio reggae que fica elétrico e lembra Luiz Tatit. A guitarra crispada marca Nossa Foda é Bossa Nova, bossa e rock ao estilo tropicalista inclusive na letra: "onda e micro-ondas sondas estomacais/ hondas e janes fondas parques industriais/zonas e cortizonas gelo geral gerais/ bombas bimbando bombas bifas & bacanais".
Voz grave e áspera, Cida Moreira é a convidada da faixa mais densa do disco, Vãos. Toada/ chamamé com viola caipira, Uma Borboleta traz uma brisa telúrica. E Gênesis fecha a história em clima de samba-enredo. Dos parceiros de Guto, só o mineiro Daniel Coelho não integra a banda que gravou o álbum – os outros são os paulistas Thiago Lourenço, Guilherme Vieira e Pedro Destro. Fazem participações os gaúchos Matheus Kleber, Ângelo Primon, Bibiana Petek e Giovani Berti.
Mineiro de Belo Horizonte, Guto Leite foi criado em Juiz de Fora, fez a faculdade em Campinas, viveu três anos em São Paulo e em 2008 veio para Porto Alegre com a mãe, convidada para ser pró-reitora do IPA. Daí fez mestrado na UFRGS, onde, em 2013, ingressou como professor. Tem cinco livros de poemas publicados, um deles ganhador do Prêmio Açorianos de Literatura.
Contrariando seus parceiros e Arthur de Faria, produtor de Dez Canções... (que aliás são 11), Guto optou por não colocar o álbum à venda. Só o receberam as 300 pessoas que o adquiriram antecipadamente. Talvez seja vendido só no fim de 2017, depois de shows em Porto Alegre (abril), Campinas, São Paulo, Rio e Brasília. A justificativa:
– Para mim, desde a capa, o assunto do disco, estando direta ou indiretamente nas canções, é pensar o lugar da arte neste mundo formatado para a mercadoria. As vendas ficaram restritas ao financiamento coletivo, como uma forma de restringir a noção de objeto de consumo, que está em toda parte e pra tudo. Quem comprou, comprou. Agora o disco pode ser doado, trocado, mas não comprado.
E isso será justo, Guto, para quem tiver a curiosidade de conhecê-lo depois deste texto?
Ouça aqui a faixa de abertura do álbum.
CasaDois vai abrir o PoaMundi
A dupla CasaDois, formada por Carmen Corrêa e Gabriel Sá, vai abrir, em 8 de março, o novo projeto de Antonio Villeroy no Sgt. Peppers, PoaMundi.
– Depois do sucesso da série Noites Especiais, que trouxe nomes como João Bosco, Jards Macalé, Toninho Horta, Ed Motta e vários outros, agora vamos focar na prata da casa – diz o incansável Villeroy.
Em abril, a atração será o grupo Samba e Amor, liderado pela cantora Maria Luiza Fontoura. Depois, Ana Lonardi, Tati Portela, Nani Medeiros e mais, sempre um show por mês até o fim do ano.
Carmen e Gabriel formaram o CasaDois em dezembro, praticamente junto com o lançamento do primeiro álbum dela, Do Outro Lado. A ideia deles é percorrer o Brasil de forma itinerante, por tempo indeterminado. Estrearam em Tramandaí, em janeiro, e já passaram por cidades catarinenses e paranaenses. Depois de Porto Alegre irão para São Paulo. Acompanhando-se aos violões, cantam músicas próprias e clássicos brasileiros. Para quem ainda não sabe, Gabriel é filho de Daniel Sá, violonista do grupo de Renato Borghetti.
ANTENA
Confira lançamentos da música brasileira:
CANTO DE MARAJÓ
De Alvaro Lancellotti
Conhecido como Alvinho, quando foi um dos criadores (2005) da banda Fino Coletivo, ele praticamente nasceu respirando o ambiente das tradições cariocas do samba e da seresta graças à intensa atuação do pai, o compositor Ivor Lancellotti. Esteve junto também das experimentações do mano mais velho Domênico, que atuava com Moreno Veloso e Kassin. A música de Álvaro é uma extensão dessa aprendizagem mas com um viés bem próprio, como fica evidente neste segundo álbum (o primeiro saiu em 2008). Ao lado de Domenico e de amigos como Pedro Costa, Davi Moraes e Adriano Sampaio, ele constrói uma música etérea, melodiosa, quase minimal, mesmo que emoldurada por batuques afros, guitarras, programações. As letras são instantâneos do cotidiano como canções pintadas, algumas marinhas – e se ouvem as cores. Parece uma ópera, cada canção como continuação da outra e a voz de Álvaro, que tem um quê de Bethânia. Muito bonito. Independente, R$ 20 em dobracontato@gmail. com
ASSIM TRADUZI VOCÊS
De Paulinho Martins
Liderada pelo cavaquinista Avendano Jr. (1939 – 2012), a cena pelotense do choro marcou época. E segue em frente. De seus antigos parceiros, um dos mais admirados é o bandolinista Paulinho Martins, que chega ao primeiro disco mostrando personalidade própria. São 10 composições dele e a valsa-choro de Avendano que escolheu parabatizar e fechar o álbum. Os arranjos têm formações variadas, duos, trios, quartetos, um quinteto. Mesmo dominando o choro tradicional, como demonstra em três ou quatrotemas, entre eles o nostálgico Ao Mestre, Paulinho revela na maioria uma predileção pela mistura com ritmos e sonoridades gaúchas, como em Suldade, Pegadinha e Chama-me. A música 25 de Fevereiro começa um choro e de repente vira jazz. Tem também um Tango em Pelotas. Entre os músicos estão Rui Madruga (7 cordas), Pardal (violão), Nando Barcellos (percussão) Julio Zabaleta (flauta) e Aluísio Rockembach (acordeom). Escápula Records, R$ 25 em avapordiscos.com.br
INFLUÊNCIA DO JAZZ
De João Senise
A disposição de João Senise é seguir os clássicos. Se no álbum anterior ele teve a coragem de interpretar sucessos de Frank Sinatra, neste quarto abre um leque de canções que atravessa a segunda metade do século 20, mais ou menos com a bússola da bossa nova. E ao lado de um time all stars de músicos. Com seu timbre grave, o filho de Mauro Senise já ultrapassou a medida da "revelação de cantor" e inclui-se entre as grandes vozes masculinas do país. Tem Estamos Aí, Influência do Jazz, Samba de Verão, Fotografia, Sá Marina, Eu e a Brisa, Balanço Zona Sul, Estate, La Mer, Tem Dó, Jura Secreta e A História de Lily Braun. Arranjos de (seu padrasto) Gilson Peranzzetta e participações de 25 nomes, entre músicos e convidados, de Alaíde Costa a Zeca Assumpção, passando por Antônio Adolfo, Edu Lobo, Jota Moraes, Leo Amuedo, Joyce Moreno, Mingo Araújo, Osmar Milito, Quarteto Radamés Gnattali, Menescal, RomeroLubambo, Sueli Costa, Wanda Sá. Selo Fina Flor, R$ 25