Ando mergulhado no Centro de Documentação e Informação de Zero Hora (que em outros tempos era conhecido simplesmente como "o Arquivo"), folheando jornais e jornais para reunir matérias que escrevi ao longo de 25 anos. As folhas amareladas, com seu cheiro característico, têm me trazido muitas surpresas e curiosidades, às vezes valendo como boas sessões de psicanálise. Daí, pensei em dividir com os leitores da coluna algumas dessas curiosidades. É o que começo fazer hoje, abrindo o Ano-Novo com velharias de meados dos anos 1970.
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-Há mais de um mês, os jornais de Porto Alegre anunciavam para os dias 10 e 11 de julho, no Gigantinho, o show Os Doces Bárbaros, grande sucesso de 1976 no showbizz brasileiro reunindo Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia pela primeira vez. Na época, ninguém ousava fazer dois shows no ginásio para 15 mil lugares, mas a expectativa era de que os ingressos se esgotassem. No dia 8, a notícia vinda de Florianópolis ganha capa de ZH: Gilberto Gil fora preso por terem achado maconha com ele. Repeteco na capa do dia seguinte e na do dia 10, agora chamando para entrevista no aeroporto que fiz com o empresário dos baianos, Guilherme Araújo (ele merece uma biografia). Gil teve que passar por quarentena em uma clínica e o show só chegaria ao Gigantinho em outubro.
-Entrevistei Raul Seixas na tarde de 27 de dezembro de 1976. Durante a conversa, me ofereceu uma bala de goma. Em casa, antes de ir para o Gigantinho, levei um susto: minha urina estava azul! Depois do show (problemático desde o público de apenas 800 pessoas), fui cumprimentá-lo no camarim. Com um sorriso malandro, perguntou se eu gostara da bala... Um trechinho da entrevista, publicada na Revista ZH de 9 de janeiro: "Estudante é a classe que mais me irrita, por isso é que não faço circuito universitário. São uns babacas, uns trouxas. Prefiro me apresentar no subúrbio pras empregadas domésticas e pros pedreiros. Como Caetano disse um dia num show, não existe público mais classe Z do que o classe A".
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-A primeira banda criada por Fughetti Luz depois da volta a Porto Alegre, com o fim do Bixo da Seda, foi a Laranja Mecânica. Meses de ensaios até a estreia no teatro do grupo Oi Nóis Aqui Traveiz, centro da cena alternativa na rua Ramiro Barcellos, 485. Cerca de 60 pessoas estão lá para o show, em 24 de abril de 1978. Cinco ou seis músicas depois, uma gritaria interrompe o show com a invasão do lugar pela polícia, que leva os músicos e a plateia para o Dops. A Laranja Mecânica morreria ali, como a banda de existência mais rápida na história do rock gaúcho. E, menos de um mês depois, o espaço seria fechado pelas autoridades. Entre as exigências burocráticas para a reabertura, estava a mudança do nome para Olhem-nos Aqui Outra Vez...
-Converso com Charles Mingus, grande da história do jazz, antes de sua apresentação em 26 de maio de 1977 no Salão de Atos da UFRGS. Peço que fale da influência que recebeu de Duke Ellington. Responde: "Não posso dizer isso em cinco palavras, precisaria escrever um livro a respeito". Comento que ele é tido como uma pessoa temperamental. Retruca: "As más notícias correm muito depressa...". A entrevista ganhou página em ZH e o show teve como "atração extra" a bronca de Mingus, com consequente expulsão, de um cinegrafista da TV Gaúcha que invadira o palco para filmá-lo. Registrei o fato, apoiando Mingus, o que me valeu reprimendas como "mau colega".
-Realizado de 11 a 13 de junho de 1976, o 5º Musipuc, mais importante festival universitário da década, teve como jurados os compositores Luiz Coronel, Hermes Aquino, Celso Loureiro Chaves, José Fogaça, Ivaldo Roque e Clóvis Silva, o maestro Alfred Huelsberg e os jornalistas Pedrinho Sirotsky, Alice de Lorenzi (mais tarde Alice Urbim), Ney Gastal, Maria Wagner e Juarez Fonseca. Pois mesmo um júri desse tamanho entrou num impasse e acabou atribuindo dois primeiros lugares. Nelson Coelho de Castro, revelação daquele ano, concorria com duas músicas que não ficaram nem entre as cinco premiadas. No ano seguinte, Nelson faria seu primeiro show, ...E o Crocodilo Chorou, produzido por Luciano Alabarse.
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-Nos anos 1970, Noel Guarany era, depois de Teixeirinha, o nome mais nacional da música gauchesca. Seu canto social despertara a atenção dos estudantes paulistas que lutavam contra a ditadura, e ele fez muitas apresentações no circuito universitário, todas com destaque na imprensa. Minha coluna acompanhava de perto os movimentos de Noel, que em 1977 estava lançando seu disco talvez mais importante, Payador Pampa Guitarra, feito com Jayme Caetano Braun. No dia 5 de julho, ele seria uma das atrações do show promovido em São Paulo pelo jornal alternativo Versus, ao lado de Chico Buarque, Nara Leão, Edu Lobo, MPB-4 e o grupo Tarancón. Mas, horas antes da hora marcada para o início, o show foi proibido pela Censura Federal.
-Vencida pela milonga Negro da Gaita, de Gilberto Carvalho e Airton Pimentel, a 7ª Califórnia da Canção Nativa foi a primeira a repercutir nacionalmente. Além da imprensa gaúcha em peso, estavam em Uruguaiana, em dezembro de 1977, enviados especiais do Jornal do Brasil, O Globo, Pasquim e IstoÉ. Dois destaques especiais da edição: César Passarinho, intérprete de Negro da Gaita, que se tornaria o cantor-símbolo dos festivais nativistas, e a convidada Fafá de Belém, que naquele ano gravara mais uma música de autores gaúchos, Cordas de Espinhos (Luiz Coronel/Marco Aurélio Vasconcellos), premiada na 5ª Califórnia.
-Hermeto Pascoal, em entrevista publicada em 24 de junho de 1977: "No show quero ver todo mundo de gravador na mão registrando o que estou tocando. Não vou gravar mais discos, porque não quero mais me repetir". Depois do disco daquele ano, o clássico Slave Mass, gravado nos Estados Unidos, lançaria outros 15...
-Oportunidade única: três lendas do samba mais uma revelação a preços módicos na capital gaúcha: Clementina de Jesus, Cartola, Nelson Cavaquinho e Leci Brandão. Promovido pelo DCE da Unisinos, o show do dia 19 de junho de 1976 teria tudo para ser histórico, pois no futuro eles dificilmente se apresentariam juntos. Mas a divulgação falhou e parece que o interesse do público também. Resultado: menos de 300 pessoas no Gigantinho. Eu estava lá e senti a decepção geral, do camarim à plateia, que era igualmente a minha. Nunca mais os tivemos juntos. Nem o DCE se recuperaria.
-A primeira edição do Projeto Pixinguinha em Porto Alegre, realizada em 1977, teve recorde nacional de público: mais de 70 mil pessoas assistiram aos 13 shows no S alão de Atos da UFRGS, realizados de segundas a sextas-feiras. Ivan Lins e Nana Caymmi abriram o projeto, que, entre outras duplas, teve João Bosco e Clementina de Jesus, Cartola e João Nogueira, Nelson Cavaquinho e Beth Carvalho, Jards Macalé e Moreira da Silva. No ano seguinte, com 10 duplas, o Pixinguinha foi assistido por 54 mil pessoas. O show de maior público (15.531) foi o de Fafá de Belém e Beto Guedes
-Na música brasileira, as três mulheres que mais fizeram minha cabeça foram Elis, Nara e Rita. Entrevistei-as várias vezes e sempre me trouxeram novidades. Não deve ser coincidência o fato de serem as únicas estrelas que posaram para mim. Da série de fotos de Elis, feita em 1977, eu lembro bem - até por terem sido muito usadas. Mas só agora, ao me aprofundar no arquivo de ZH, "descobri" que Nara e Rita também se submeteram à lente de minha velha Minolta. Elis tinha 29 anos, Nara, 36, e Rita, 30. Aqui, pedacinhos das primeiras entrevistas que fiz com elas.
Elis: "Já não tenho aquela necessidade de deixar alguma coisa. Isso de querer deixar, no fundo no fundo, é o medo da morte. Ela vai pintar e não adianta, quer eu queira quer não, tô em contato com ela todo dia - mesmo que não seja diretamente, através da televisão, do jornal. Eu sinto uma certa solidão em relação a tudo, me sinto meio perdida. E ao mesmo tempo desapareceu de dentro de mim, da minha cabeça e das minhas células até, a necessidade de deixar alguma coisa." (24 de agosto de 1974)
Rita: "Olha, eu não posso ficar cantando canções de protesto porque não sou deputada. Faço minha música e nela dou os meus toques, mas através da diversão. Quando fui presa (por posse de maconha, em 1976), as pessoas estavam esperando que eu saísse da prisão já com uma posição política, e aquela coisa toda. Aí eu falei: 'Não, fui presa porque marquei touca, porque foi bobeira minha'. No fim, o tiro saiu pela culatra, vendi muito mais discos, fiz muito mais shows e tive mais sucesso." (14 de maio de 1978)
Nara: "Sempre tive dificuldade de juntar a cantora com a pessoa. Para mim, cantar era uma coisa extra. Em vez de achar que era uma coisa a mais que eu tinha, que cantava, que tocava violão, tanto fosse para três mil pessoas como para duas, eu achava que era uma coisa extra, tinha dificuldade em integrar isso. Agora acho que estou conseguindo. Estou começando vagamente a achar que pode ser que eu vire uma cantora". (29 de abril de 1978)