No dia 18 de agosto de 1973, o Jornal Nacional, da TV Globo, exibiu reportagem sobre a volta ao Brasil de Geraldo Vandré, depois de quatro anos e meio de exílio. A chegada, no aeroporto de Brasília, teve entrevista exclusiva. Vandré disse que decidira abandonar a linha política em suas canções, respondendo às perguntas do repórter cujo rosto não era mostrado. "Minhas canções estão mais anunciativas que denunciativas", disse. Mas tratava- se de uma farsa. O fato: o compositor chegara ao Brasil um mês antes, 17 de julho, pelo Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro, sendo preso ao desembarcar. O Jornal do Brasil publicou discretamente a notícia no dia seguinte e, à tarde, como todas as redações do país, recebeu uma ordem da censura federal: "Está proibida a divulgação de notícias e comentários sobre o subversivo e cantor Geraldo Vandré".
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A farsa, a "versão oficial" arquitetada pelo governo para que ele pudesse sair em liberdade, é descrita em minúcias num dos capítulos mais tensos da biografia Geraldo Vandré - Uma Canção Interrompida, do jornalista paulista Vitor Nuzzi, lançada no final de dezembro. Na verdade, todo o livro é tenso, pois desde antes dos infortúnios agudos, a partir da fuga do Brasil (no Carnaval de 1969, pela fronteira gaúcha com o Uruguai), o temperamento do artista paraibano o levava frequentemente a entrechoques. Ao talento para montar grupos como o Quarteto Novo, que lançou Hermeto Pascoal e Airto Moreira na criação do futuro clássico Disparada (para muitos sua obra-prima), ele contrapunha a facilidade de desfazê-los. Desde que chegou ao Rio, em meados dos anos 1960, integrando-se ao clima bossa-novista, nunca se enturmou por muito tempo.
No ápice de tudo, a canção Caminhando - Ou pra Não Dizer que Não Falei das Flores (que perpassa todo o livro, como um personagem), ele estava sozinho ao violão no palco do Maracanãzinho - mas com um coro de 30 mil vozes. Música-símbolo daquele período que afinal "traria" em 1968 o AI-5 e a ditadura dentro da ditadura, Caminhando o levou ao céu e ao inferno. O livro pinta isso com todas as cores e deixa bem claro, com fartos depoimentos de militares, jornalistas e artistas (como seu desafeto Caetano Veloso), que, se Vandré fosse preso naquele dezembro, tinha sólidas chances de não escapar com vida. Os milicos o odiavam como um inimigo. Felizmente ele não foi nosso Victor Jara, assassinado por Pinochet - do qual escapou por pouco, pois o golpe no Chile viria apenas 40 dias depois de sua saída para o fim do exílio.
Exílio reconstituído
Ao fim de 10 anos de trabalho, Vitor Nuzzi aprontou seu livro no início de 2015, quando ainda estávamos naquela bronca das biografias não autorizadas, caso dele, que nunca conseguiu ser recebido por Vandré. Foi por isso recusado por seis editoras. Decidiu imprimir cem cópias por conta própria e distribuí- las entre amigos e jornalistas. No meio tempo, outras duas biografias foram lançadas, em setembro e outubro (veja abaixo). Em outubro, Nuzzi conseguiu editora, teve tempo de ler essas duas e, sem preconceitos, ainda agregar informações a seu livro, que é o melhor de todos. Uma Canção Interrompida talvez seja o mais completo documento das "relações" da ditadura com a arte e a cultura. Há inúmeras biografias da época e em nenhuma se encontra os mesmos detalhamento e consistência.
O livro documenta todos os passos de Vandré, revela muitas coisas e desfaz algumas verdades que se tinham como definitivas sobre ele. Nuzzi viajou a Santiago do Chile e a Paris para reconstituir os errantes movimentos do compositor no exílio. Cercada de fantasias, suspense e algum sensacionalismo (teria enlouquecido pelas torturas), a quase enigmática vida de Vandré de 1973 aos dias atuais é tratada por Nuzzi com objetividade plena. Em nenhum momento se trai com a condescendência de fã. A dimensão do Vandré artista, propriamente dita, vai até o exílio. Depois, começa a dimensão do homem que decidiu viver como um cidadão comum, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, funcionário público federal aposentado, 80 anos. Os dois juntos formam a dimensão do mito.
GERALDO VANDRÉ - UMA CANÇÃO INTERROMPIDA
De Vitor Nuzzi Biografia, 351 páginas, Editora Kuarup.
Mais Vandré
- Vandré, o Homem que Disse Não, de Jorge Fernando dos Santos (Geração Editorial).
- Não me Chamem Vandré, de Gilvan de Brito (Editora Patmos).
Ambos os livros foram lançados em 2015.
ANTENA
MODA DE ROCK II
De Ricardo Vignini & Zé Helder
O projeto dos dois violeiros do grupo paulista Matuto Moderno nasceu como uma brincadeira para mostrar a seus alunos o potencial da viola caipira. Acabou ganhando vida no álbum Moda de Rock - Viola Extrema, de 2011, que teve boa repercussão, levando o duo a fazer mais de 300 shows pelo Brasil (em Porto Alegre, a apresentação foi no Santander Cultural) e até Argentina e EUA. O volume 2 mantém a fórmula das versões instrumentais de clássicos do rock tocadas com o espírito das modas de viola, sem perder a energia roqueira e aproximando fãs dos dois gêneros. Entre outras, Vignini e Helder atacam de Refuse/ Resist (Sepultura), Why Worry (Dire Straits), Fearless (Pink Floyd), Paint It Black (Stones), I Want to Break Free (Queen), Laguna Sunrise (Black Sabbath), We Want the Airwaves (Ramones), Fade to Black (Metallica) e Wasted Years (Iron Maiden). A coisa funciona mesmo. ProAc/Folguedo/ Tratore, R$ 26.
A VOLTA DE ALICE
De Tomás Improta
Desde a década de 1990, o pianista e tecladista carioca vem desenvolvendo uma carreira internacional de prestígio. Com formação clássica, Improta começou como jornalista até profissionalizarse como músico nos anos 1970, desde logo acompanhando e gravando com Baden Powell, Nara Leão, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Paulo Moura, João Bosco e muitos mais. Neste nono álbum solo, ao lado de músicos de três gerações, como Raul de Souza, Jessé Sadoc, Marco Lobo, Carlos Pontual e Domênico Lancelotti, faz um trabalho refinado, com ótimos arranjos e grande desempenho dos sopros. Entre composições próprias, algumas usando sintetizador mais um ou dois instrumentos, ele toca Império do Samba (Zé da Zilda), Vagamente (Roberto Menescal), Esperança Perdida (Tom Jobim/Billy Blanco) e Avarandado (de Caetano Veloso, em solo de piano). MinC/ Kalimba, R$ 25.
SINUOSA
Do Quarteto Quadrantes
Liderado pelo compositor e violonista/guitarrista Bruno Elisabetsky, o Quadrantes é uma das novas formações instrumentais mais comentadas de São Paulo. Está em atividade desde 2012 e no ano seguinte lançou o primeiro álbum, chamando a atenção para as muitas informações harmônicas de sua música, cruzando modernidade e tradição. É música brasileira (tem samba, choro, bossa) com estrutura jazzística, em que a flauta (de Gabriela Machado) divide, com o violão ou a guitarra, a responsabilidade pelos solos - o grupo se completa com Renato Leite (baixo) e Arnaldo Nardo (bateria). Numa prova de aposta no diálogo entre gerações, o Quadrantes chamou o bamba Swami Jr. para produzir este segundo CD e convidou para participações especiais a cantora Joyce Moreno, o clarinetista Nailor Proveta e o saxofonista Teco Cardoso. Todas as composições são de Elisabetsky. Independente/ Tratore, R$ 20.