"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, eles simplesmente serão governados pelos que gostam." (Platão)
É certo que ninguém escolheria viver num mundo marcado pela desconfiança. Se estamos vivendo esse tempo, significa que temos enorme parcela de culpa por termos permitido, por inércia ou comodismo, que os valores básicos fossem fraudados, gerando em grande parte esse desconforto que não desgruda e que nem conseguimos explicar, mas mantém uma náusea engatilhada e um resmungo permanente, única evidência de que estamos infelizes. Ainda que sigamos fazendo de conta que está tudo bem, mesmo com a consciência grunhindo que não.
A primeira função comprometida por esse estado de coisas é o sono, que some sem causa aparente, alongando as madrugadas nesse tempo de solidão fisiológica em que a realidade, que está ruim, prenuncia-se ainda pior.
Há poucas décadas, em sinal de preocupação com o bem-estar coletivo, eram frequentes as pesquisas de opinião, para saber, numa atitude proativa, qual setor da sociedade era melhor cotado perante a população. Lembro de Correios, Justiça, imprensa e médicos, estes liderando a pesquisa. Tempos depois, os Correios, provavelmente constrangidos pela distância que os separava dos outros objetos de pesquisa, tiveram uma piora impressionante, atribuída a um sinal dos tempos modernos, vertiginosamente acelerados pela tecnologia da informação. Mas coincidência ou não, o topo daquela lista despencou a seguir. Em solidariedade?
Para provar que não estamos em um regime totalitário, resmungo pode. Em casa.
Políticas que fracassaram em todos os lugares do mundo em que houve quem acreditasse nelas foram sacudidas do mofo que as cobria e apresentadas como novidades. E outra vez estabeleceu-se a supremacia do discurso vazio sobre os fatos indiscutíveis.
E a desconfiança generalizou-se porque quase nada era como parecia ser, e cresceu a percepção de que só teria certeza de alguma coisa quem estivesse mal-informado.
A Justiça tornou-se fluida, e o brado "isso é inconstitucional!" passou a ser repetido com tal frequência que, depois de um tempo, ninguém mais sabia o que aquilo queria, de fato, dizer. Talvez clamassem pela memória da dona Constituição, uma senhora originalmente bonita, mas que passou por tantos acréscimos e remendos que é evocada somente quando vítima de outro atropelamento, ainda mais desfigurante.
A imprensa, outrora formadora de opinião, fragmentou-se como representante de uma sociedade ideologicamente dividida, em que cada um lê ou ouve só o que coincida com sua opinião, fugindo do contraditório, que sempre foi o mais poderoso antídoto da ignorância, individual ou coletiva.
A medicina, historicamente vista como elite social nos países desenvolvidos (provavelmente porque os poderosos sempre tiveram medo de morrer de uma doença tratável), passou a ser ostensivamente aviltada na sua origem, com cursos caça-níquel sem nenhuma preocupação com qualidade, vitimando de morte a quem nunca pode escolher.
Com os valores básicos em franca degradação, ninguém mais tem ânimo para promover uma pesquisa que apurasse, por pura curiosidade, em qual setor da República o povo confia menos. E por quê? Porque ninguém está interessado no que o povo pensa, desde que siga pagando os impostos, claro, e guarde para si sua modesta opinião.
E, para provar que não estamos em um regime totalitário, resmungo pode. Em casa.