Cada vez que seu Antônio internava na UTI do Pavilhão Pereira Filho, nos primórdios dos anos 1980, era uma chance imperdível de renovar o fascínio que envolve alguns casais encantados que alcançaram a plenitude do carinho compartilhado. O desvelo da Maria do Carmo comovia e estava explícito nos gestos mais simples, como pentear o cabelo ralo com os dedos magros, ou desfazer cada dobra indesejada no lençol.
Naquele ano, o enfisema progressivo chegara ao limite, e o encurtamento entre as internações prenunciava o fim. Mesmo assim, cada alta para casa merecia uma comemoração das enfermeiras, capitaneada pela Do Carmo, que se despedia com olhos de gratidão e palavras de esperança que cada vez mais pareciam distantes da realidade.
Em geral, tínhamos duas semanas de sossego, anunciando aquela a pausa que todas as doenças crônicas dão — e das quais o enfisema é, sem dúvida, a mais cruel.
Nunca antes a tristeza tinha sido maior do que esperança. Mas ainda assim a pergunta da Do Carmo, me chocou: "Desta vez ele não escapa, não é, doutor?".
E então, numa noite de sábado, o Antônio, arroxeado, trêmulo e confuso, foi outra vez admitido, daquela vez sem o sorriso com que sempre avisava: "Não se assustem, só vim matar a saudade de vocês!". Nunca antes a tristeza tinha sido maior do que esperança. Mas ainda assim a pergunta da Do Carmo, me chocou: "Desta vez ele não escapa, não é, doutor?".
Parecia muito improvável a sobrevivência, mas cadê a parceria que todo mundo invejava?
Nunca discuti a reação dela com os colegas de atendimento, mas a mim impactou muito, porque na imaturidade da juventude aquilo me pareceu puro desapego, e o seu Antônio, um queridão feito poço de afeto, não merecia aquele abandono.
Demorei um tempo, e foram exatamente as doenças crônicas que me ensinaram que o sofrimento extremo e sem redenção invariavelmente desperta nos cuidadores mais amorosos a consciência de que a morte, com todo o flagelo da perda, pode ser, sim, a última e a mais dramática das formas possíveis de compaixão. Enquanto toda a dor se tolera quando representa uma barganha para o retorno à vida normal, o sofrimento unicamente como antessala da morte é uma crueldade. Soube, tempos depois, que a Do Carmo tinha morrido subitamente, rodeada de filhos e netos, que a idolatravam. E com isso perdi a última oportunidade de agradecer-lhe a lição.
Mas lembro dela sempre que convivo com o sofrimento desmedido de pessoas boas, em algum desses martírios que até os deuses teriam dificuldade de explicar.
E foi inevitável evocá-la ao ler a história de desespero de Alain Delon, uma figura mítica que no século passado representou o modelo de deslumbramento das meninas e de inveja dos meninos da minha geração, e agora delegara ao filho a responsabilidade de organizar a interrupção assistida de uma sobrevivência que perdera o sentido.
Nas redes sociais, os juízes de plantão, com a maldade sempre engatilhada, ignoram nos vereditos cruéis uma peculiaridade do seu sofrimento: o acidente vascular cerebral que lhe roubou muitas funções orgânicas e principalmente motoras não lhe afetou a cognição, de modo que ele, em fraldas, se tornou um testemunho compulsório dos seus escombros deploráveis.
Acho que merece empatia quem sempre se deu ao luxo de escolher os melhores papéis e agora se nega à condição de espectador da sua infinita desgraça.