Nós, professores, continuamos a receber pedras brutas de diferentes tamanhos, mas agora sem nenhuma certeza do que tenha dentro (na foto, um dos cavalos de Marly, esculpidos por Guillaume Coustou, o Velho)
A Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criada em 1808 pelo príncipe regente Dom João VI, é a segunda mais antiga das faculdades médicas do Brasil, E tem uma histórica preocupação com a qualidade da formação profissional no nosso país.
O simpósio sobre educação médica girava em torno de uma pergunta central que todos tínhamos que, de alguma maneira, responder: "O que estamos errando na formação médica?".
O tipo de pergunta que desconserta porque naturalmente somos mais afeitos ao sucesso, qualquer que seja a tarefa. Mas sem espaço para choramingar, havia de elencar as causas de um desempenho no qual, a julgar pelo produto final, estamos fracassando.
A hierarquia acadêmica começou a ser questionada, e os influencers sentiram-se tratados como gurus.
Certamente, de um tema tão multifacetado e complexo não se pode esperar uma resposta única e abrangente. É certo que professores, alunos e circunstâncias mudaram, e com uma velocidade estonteante capaz de triturar os conceitos mais enraizados e pretensamente definitivos neste mundo líquido, de transformações permanentes, em que a única certeza é a de que não sabemos como o amanhã será.
E claro, é sempre mais difícil assumir o quanto erramos, por imprevidência inércia, boa-fé ou comodismo.
Vendo retrospectivamente, foi uma ingenuidade imaginar que seria previsível o resultado da obra pronta, ignorando-se os indícios de que a qualidade da matéria-prima fosse duvidosa.
Impossível não evocar a parábola de Galeano, na qual um escultor famoso recebeu uma grande pedra e um pedido da prefeitura para produzir, com seu talento, um grande cavalo para colocar na praça central da cidade. Subido numa escada, pôs-se a trabalhar, a golpes de martelo e cinzel, sob os olhares curiosos dos meninos do bairro.
Dias depois, começaram as férias, e as crianças foram para as montanhas ou o litoral. Dois meses mais tarde, quando voltaram, um lindo corcel ocupava o ateliê do artista, e um dos meninos, com os olhos muito arregalados, perguntou: "Como é que você sabia que dentro daquela pedra havia um cavalo?".
Os tempos mudaram, as prioridades inverteram-se, a instantaneidade da informação induziu à ideia equivocada de que pressa é virtude, que o açodamento é sinônimo de inteligência, que a prudência é indício de insegurança, e que o número de seguidores é prioritário no currículo de qualquer candidato, para qualquer função.
A imaturidade decorrente passou a se manifestar na incapacidade cognitiva de redigir um texto que exprima emoção e, muito fortemente, na fugacidade das relações amorosas, como se amor e ciúme tivessem por súbito desencanto se tornado sentimentos obsoletos.
Na verdade, estávamos a caminho de descobrir que a falta de pertencimento afetivo é a mais aguda expressão de pobreza emocional, congênita ou adquirida pelo exercício da impessoalidade.
Com evidente repercussão na formação profissional, a hierarquia acadêmica começou a ser questionada, os influencers sentiram-se tratados como gurus, e ninguém se espantou diante da espantosa rotatividade desses virtuosos palpiteiros.
A inteligência emocional, reconhecida como indispensável para quem pretenda interagir com pessoas necessitadas de ajuda, passou a ser desprezada, ignorando-se que as diferenças individuais dos aprendizes exigem que cabeças sensíveis e experientes sirvam de modelo a quem se lança na difícil tarefa de cuidar de seres humanos, equiparados na ânsia pela felicidade, mas completamente diferentes nos atributos para alcançá-la.
Nós, professores, continuamos a receber pedras brutas de diferentes tamanhos, mas agora sem nenhuma certeza do que tenham dentro.