Mario Rigatto e Adib Jatene eram tipos humanos especiais. Além de grandes mestres, eram pensadores sábios e generosos, com direito adquirido de serem implacáveis, vez por outra.
Numa conferência na Academia Nacional de Medicina, falando sobre formação médica, evoquei-os para apontar dois pré-requisitos essenciais à esta maravilhosa profissão. Rigatto assegurava, com toda a convicção, que “ninguém consegue ser um bom médico sem antes ser uma pessoa boa”. Já Adib valorizava muito a disponibilidade: “Sempre repito aos meus filho, que o indisponível nunca será um bom médico!”. Eu não saberia dizer qual desses atributos é o mais importante, mas tenho certeza de que não podemos prescindir de nenhum deles.
Numa noite do último ano bom (naquele tempo que a gente não tinha medo, lembram?), testei, involuntariamente, a disponibilidade, esta virtude pouco aclamada, mas que considero essencial em qualquer atividade, e muito especialmente na medicina, a ponto de jamais encaminhar pacientes para colegas que sei que são competentes, mas que nunca estavam no lugar quando precisei deles.
Mas voltando à história que motivou esta crônica: foi uma ligação fora de hora, com uma voz talvez reconhecível, se houvesse mais tempo para investigar. Surpreendido com o inesperado da chamada, sem procedência identificada, soltei um “alô”.
– Dr. Camargo, o Sr. está bem ou meio gripado? Sua voz parece meio rouca! (Veja que grande potencial clínico para a telemedicina, visto que faz diagnóstico só com um alô.)
– Estou bem, mas acontece que recém acordei, estou em Berlim, e aqui são 3h da madrugada!
– Que bom que o Sr. está bem, porque eu tenho uma pergunta bem rápida: um cirurgião que trabalha com o Sr. e que sempre esqueço o nome me pediu uma tomografia para a minha revisão daqui a seis meses. O Sr. acha que essa tomografia deve ser com ou sem contraste?
Com a vontade de voltar a dormir maior do que a irritação de ter sido involuntariamente acordado por uma bobagem, fiz a pergunta indispensável:
– O Sr. tem algum problema nos rins?
– Não. Deusulivre!
– Então, é melhor fazer com contraste.
– Obrigado, Dr. Estimo melhoras!
– Obrigado para você também.
E foi um alívio voltar a dormir!
Talvez o grande problema da disponibilidade seja a definição do limite.
Talvez o grande problema da disponibilidade seja a definição do limite. Naquele inverno, entrei no elevador com uma velhinha, simpática e sorridente.
– Nem acredito lhe encontrar no elevador, não perco uma das suas crônicas no sábado!
– Que bom, muito obrigado pelo carinho!
– Posso lhe pedir uma coisinha bem rápida?
– Sim, pois não.
– Tem luz no seu celular?
– Sim, claro!
– Será que o Sr. podia dar uma olhadinha na minha garganta, que anda me incomodando?
Antes que eu pudesse responder, a bocarra já estava escancarada. Sem alternativa, dei uma espiada rápida. Quando a porta do elevador se abriu, não senti nenhuma vontade de explicar àquele povo que esperava para embarcar o que a lanterna do meu iPhone fazia esparramada na amígdala esquerda daquela vozinha que não perde uma crônica minha no sábado.
E saí caminhando pelo corredor, encantado com a minha própria disponibilidade.
Claro que foi uma consulta bizarra, mas como estabelecer o tal limite se a amígdala da vozinha não tem hora para incomodar?