Estabelecido que todos mentem, talvez devêssemos organizar esse contingente, criticável na essência, mas, pelo que se vê, inerente à nossa condição humana.
E precisamos admitir que existem tipos muito diferentes de mentira. Pode-se mentir para impressionar, certamente contando que o outro não perceba, para consolar, quase sempre correndo o risco de ser considerado um idiota pelo consolado, ou para explicar o inexplicável, essa tendência bem latina de confiar que, se você continuar falando, o palerma vai acreditar. Esse último grupo mereceu do genial professor Paulo Saldiva a proposição criativa de um clube: o “Otary Club”, onde os otarianos dispensariam crachá por serem facilmente reconhecidos pela capacidade inata de acreditar.
Minha intolerância mais antiga é com o contador de vantagens, um tipo frequente em reuniões sociais e quase obrigatório em entrevistas de emprego. E, como era de se esperar, essa intolerância aumenta com a nossa velhice, porque parece cada vez mais irritante que alguém suponha que, apesar da idade, ainda somos impressionáveis.
Pode-se mentir para impressionar, para consolar ou para explicar o inexplicável.
Como a mentira é uma bengala para nossa autoestima, quase nada do que se publica nos sites de relacionamento é completamente verdadeiro. Uma pesquisa baseada nas informações obtidas em uma rede social, na Califórnia mostrou que os homens eram, em média, cinco centímetros mais baixos e as mulheres estavam seis quilos acima do peso anunciado. Isso certamente justifica a marcação do primeiro encontro em um lugar público que permita dar uma inspecionada na encomenda, reduzindo o dano do voo cego característico dessas aventuras. A ficção, vista como o modelo mais intelectualizado da mentira, é a prova de que a realidade, além de crua, é muito chata, e ninguém suportaria a literatura que incluísse o bate-papo da fila do caixa do supermercado ou um romance que relatasse a monotonia de uma vida tranquila e intoleravelmente feliz. Então a imaginação se encarrega de maquiá-la.
O incomparável Ariano Suassuna confessava com naturalidade: “Eu minto, minto muito”. E dizia-se encantado com três figuras tradicionais das pequenas cidades do interior: o bêbado, o louco e, naturalmente, o mentiroso. Mas fazia uma distinção entre os mentirosos, elegendo o criativo do bem como o modelo divertido da inteligência mentirosa: o exemplo era de um jovem que atribuía o fato de sua família ser a maior produtora de mel do Recife à proeza de seu pai ter conseguido o cruzamento da abelha com o vagalume, de modo que, com uma lanterna na bunda, elas trabalhavam dia e noite. Não reconhecer a criatividade e o bom humor dessa história e incluí-la de imediato no rol do mau-caratismo identifica apenas um dos sintomas de azedume sensorial, frequente nos adeptos o politicamente correto.
No outro extremo, os religiosos trabalham nos seus cultos com uma tese temerária: a verdade liberta. Quando o drama que flagela um indivíduo for a culpa, é previsível que sim, mas, em medicina, a prática da verdade absoluta, tão defendida pelos anglo-saxões, ignora uma realidade indiscutível: nós nunca estamos prontos para absorver toda a notícia ruim. Sempre defendi que dar a alguém o tempo de recrutar suas reservas emocionais para enfrentar a adversidade é, antes de mais nada, um exercício de empatia e compaixão.
Por fim, guardo com muito carinho a lembrança da convocação de um mestre querido que, às vésperas da morte, pediu que eu falasse no seu enterro. E acrescentou: “Se achar que o que fiz foi pouco, exagere. Se ainda assim parecer pouco, minta!”.
Por ele ter sido quem foi, não precisei fazer nem uma coisa, nem outra. E sobrou muito.