Afora alguns comportamentos bizarros que extrapolaram a taxa de maldade compatível com uma sociedade dita civilizada (dos quais o nazismo e o stalinismo – pode inverter a ordem – foram modelos imbatíveis nos últimos cem anos), a atitude universal tende a ser de uma perplexidade paralisante, que mereceria um estudo para entendermos a nossa falta de atitude mais realista nos pródomos das grandes crises. Como se já estivéssemos doentes, antes de a doença chegar.
Se focarmos nas maiores tragédias sanitárias, mais ainda nos identificaremos com esses comportamentos recorrentes. Albert Camus, no seu incomparável A Peste, já flagrou esse conceito ao descrever a cidade-sede da epidemia como uma espécie de capital da rotina, da mesmice, em que a falta de ambição era agravada pela indolência exacerbada pelo clima desértico. Na segunda página, ele colocou uma frase maravilhosamente didática de definição da apatia: “Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e reflexão, somos obrigados a amar sem saber!”.
A indiferença, filha primogênita do desânimo e da preguiça e irmã da tolerância, explica em grande medida a inépcia descrita no limiar de todas as grandes tragédias, onde a negação e a expectativa falaciosa de que “tudo vai passar” é uma constante. Pura comodidade, para não assumirmos que uma grande provação possa estar a caminho.
Como aquela onda gigante que se formou no sudeste da Ásia e avançou para o continente, onde foi lindamente documentada por inúmeros cinegrafistas amadores, que de tão inebriados pelas imagens espetaculares, alguns deles, os otimistas irrecuperáveis, foram arrastados e mortos, porque afinal o tsunami não tinha intenções turísticas na Indonésia.
Na novela de Camus, desde que o primeiro rato foi encontrado morto, com a boca ensanguentada, até a busca de providências porque alguma coisa muito grave estava acontecendo, gastaram-se muitas semanas, um tempo precioso que retardou o isolamento dos infectados, reconhecido desde sempre como a medida preventiva básica para reduzir a propagação do que fosse que atacasse humanos.
A negação, alertarão os psiquiatras, é um item indispensável do nosso kit de sobrevivência, e, apesar do quanto encerra de nocivo, sempre traz uma dose avulsa de energia vital, que retarda ou ameniza a depressão que toma conta de todos, quando percebemos, com firma reconhecida, o insignificante que tentamos disfarçar.
Não importa a justificativa: no desenrolar de todas as catástrofes nos comportamos com um apatismo que impressiona qualquer historiador, ao ver se repetir cada uma das etapas completamente previsíveis, mas agora discutidas nas redes sociais como se ainda nem tivéssemos retirado a etiqueta do colarinho. Depois do pasmo inicial, seguem-se as teorias mirabolantes e as propostas absurdas de soluções mágicas com um alto teor de magia, que conferem aquela certeza irracional que só os fanáticos carregam sem encabular. A etapa seguinte é a de pôr a culpa em alguém, com xingamentos a distância, claro, porque nessa condição, com pouca coragem para ofensas cara a cara, recomenda-se, mais do que nunca, o distanciamento social.
Comprovado está que, depois de um tempo, cansamos de seguir as recomendações que incluam responsabilidade individual e posamos de destemidos na expectativa infantil que os outros não percebam o covarde inconsequente que somos.
O preço que pagamos por essa pretensa autonomia parida pela ignorância é que nada aprendemos com essas experiência dolorosas, e os nossos sucessores repetirão os mesmos erros, sem perceber que essa atitude arrogante e egoísta, em relação ao outro e ao planeta, é o habitat predileto da peste que carregamos no peito, cheios de prepotência.