Tempos macabros, rotina soterrada e cá estamos, desajeitados, tentando sobreviver com esta forma estranha de comunicação que é uma mistura de monólogo de consultório de psiquiatra, que às vezes parece estar desenhando, e o silêncio sepulcral do confessionário, em que o ruído mais comum é o bocejo do representante de Deus, veja só!
A gratificante presença da uma pré-lágrima no olho do aluno ao ouvir uma história emocionante na sala de aula foi substituída pela constrangedora sensação de que estamos falando sozinhos. Um dia desses, num momento de solidão máxima, pedi que todos os alunos abrissem os microfones e tossissem. Não queria uma declaração de amor, a checagem positiva de que continuávamos vivos no mesmo planeta já confortaria.
Terminada mais uma aula, dessas muito chatas, abandonei a plataforma e fiquei lamentando o quanto perdemos nesse ano que não precisava ter existido, e os seus tantos afetos desperdiçados, e a pobreza de intimidade, e a inanição de aconchego e a escassez de riso. E fiquei lembrando das muitas vezes em que a sala de aula me deu alegrias capazes de sublimar o descaso com que professores são depreciados em países como o nosso, onde nem se suspeita de porquê somos subdesenvolvidos.
Era um tipo de confissão que equivale a incontáveis pedidos de desculpas de uma sociedade que desvaloriza o professor.
Lembrei de uma aula em que contei a história de uma fofinha transplantada, que ligava para o consultório, no meio da tarde, só pra dizer: “Tio, tô com saudade!”. Quando a aula terminou, uma aluna me disse, muito emocionada: “Professor, eu lhe prometo que vou ser uma médica tão boa, mas tão boa, que um dia meus pacientes haverão ligar só pra dizer que estão com saudades minhas!”. Ou de um tímido, que quase nunca falava, e no fim de uma aula desgarrou-se da turma para, meio engasgado e trêmulo, me pedir: “Professor, eu preciso que o senhor me ajude a ser como o senhor”.
Ou de um e-mail que recebi no dia seguinte de uma conferência proferida em um grande colégio de Ensino Médio. A mãe, também professora neste colégio, contava, encantada, que seu filho adolescente chegou em casa animadíssimo e confessou: “Mãe, acabou meu sofrimento!”. E a mãe, perplexa: “Mas que sofrimento, meu filho? Nem sabia que estavas sofrendo!”. “Ah, mãe, esses dois anos sem saber o que fazer da minha vida foram horríveis. Mas agora me decidi. Vou ser médico!”
Ou do Cleber, um aluno inesquecível pela inteligência luminosa e por um senso de humor que dava graça ao seu jeito debochado. Sempre que, ao terminar uma aula, eu discutia uma situação hipotética da relação médico/paciente, lá vinha um comentário jocoso. Passados uns quatro ou cinco anos da formatura, o encontrei na Santa Casa. Com ar solene que nem remotamente lembrava a imagem que guardava dele, fez a confissão mais inesperada:
– Professor, o senhor não sabe, mas um dia o senhor disse que nós, médicos, não devemos nos esconder pra chorar, porque erramos muito e deixar que os outros percebam o quanto sofremos com isso é o único jeito de nos redimir. Eu pensei: nunca vou ser um médico frouxo assim! Mas hoje perdi um paciente de que eu gostava muito, e a família me abraçou e agradeceu muito meu atendimento e carinho. E me refugiei no carro porque não queria que me vissem chorando e eu não estava conseguindo segurar! Ainda me escondi, mas já chorei! E vim correndo lhe contar que estou melhorando.
Esse tipo de confissão equivale a incontáveis pedidos de desculpas de uma sociedade que desvaloriza o professor, porque ainda não entendeu por onde se começa a construção de uma pátria capaz de orgulhar a sua prole. Por enquanto, teremos de nos alimentar dessa paixão de ensinar, porque não há a menor chance de que o governo construa milhões de elevadores novos só para que os dedicados professores possam sonhar com salários de ascensoristas do Senado.