Em pelo menos 90% das vezes, variando conforme a especialidade, o convívio médico/paciente envolve expectativa de retorno à vida normal, e o melhor médico, qualificado como um técnico de excelência, é o parceiro adequado para ajudá-lo nas opções de tratamento e na seleção das escolhas diante das encruzilhadas. Ou seja, nesta condição, o enfoque é convenientemente otimista.
A proximidade do fim inutiliza este discurso, e o paciente, que sempre sabe quando está morrendo, repudia as promessas mentirosas. E muitas abordagens de doentes terminais morrem antes da morte, na primeira frase vazia.
Por consequência, na hora de maior carência afetiva, o paciente se percebe emocionalmente abandonado, e médico que não teve a sensibilidade de perceber a diferença se sente desconfortável. Reconhecido como inútil, se afasta.
Quase todas as pendências emocionais estão atreladas a ofensas bobas, picuinhas ridículas, amores omitidos e afetos negligenciados.
Esse momento mágico da relação médico/paciente precisa ser construído e respeitado, com a percepção de que, tendo chegado ao muro do fim da vida, não tem mais encruzilhadas, e com este paciente só se pode falar do muro para trás. Como o tempo encurtou, só interessam as ofertas que qualifiquem a despedida. E neste transe, nada é mais importante do que o perdão, porque quase todas as pendências emocionais do fim da vida estão atreladas a ofensas bobas, picuinhas ridículas, amores omitidos e afetos negligenciados. Priorizar o controle do sofrimento físico e se oferecer para intermediar o resgate das relações amorosas dispersadas pelo caminho colocam o médico, emocionalmente bem resolvido para este desafio, num nível superior desta maravilhosa profissão.
Em todas as relações, estamos sempre perseguindo interlocutores capazes de ouvir o que precisamos dizer e retribuir com palavras que movam com reciprocidade os nossos sentimentos, muito especialmente quando estamos solitários e assustados.
Um dia desses, resolvi chamar a atenção dos estudantes para a importância dos cuidados paliativos, considerando que mais de um milhão dos brasileiros que morrerão neste ano terão uma morte anunciada e precisarão de quem os proteja da solidão. A reação dos jovens foi de horror com a ideia de cuidar de pessoas que não têm salvação. Recomendei que lessem urgentemente A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, que elabora com genialidade o desterro do sofrimento solitário e a descoberta gratificante de Guérassin, um campesino escalado para cuidar do patrão quando ele já não tinha condições mínimas de autonomia, e que se revelou o parceiro mais confiável, capaz de ser sincero em assuntos que os médicos e a família só faziam mentir. Tolstoi descreveu como ninguém a extrema solidão de quem, estando às portas da morte, tem de suportar as promessas falsas de quem não entende que o fim da vida é o território da verdade definitiva porque derradeira.
O Evandro, um amigo de longa data, tinha sido submetido a um transplante de fígado e desenvolveu um câncer de pulmão, claramente inoperável na primeira avaliação. Fui visitá-lo no hospital e o encontrei rodeado de familiares que contavam histórias divertidas do veraneio passado. A alegria do grupo pelo aparente o fim da pandemia, e o entusiasmo pelas próximas férias, contrastava de tal maneira com a situação dele, que das duas, uma: ou não percebiam o quanto ele estava doente, ou a ausência do Evandro não faria falta nas futuras noitadas no Conrad.
Quando ficamos a sós, ele perguntou: “Eu estou morrendo, não estou?”. E então retribui: “Se você quer falar sobre isso, estou aqui para te ajudar!”. Pela firmeza com que segurou minha mão, senti o significado pleno de se oferecer disponível em qualquer dia futuro. Até que não houvesse mais nenhum.