J.J. Camargo

J.J. Camargo

Médico, escritor e palestrante. Formou-se em Medicina na UFRGS em 1970, especializando-se em cirurgia torácica e completando sua formação acadêmica na Clínica Mayo, nos EUA. É colunista do caderno Vida, de ZH.

Palavra de médico

O muro do fim da vida

A proximidade do fim inutiliza o discurso otimista do médico, e o paciente repudia as promessas mentirosas

J. J. Camargo

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Com o paciente às portas da morte, só se pode falar do muro para trás. Como o tempo encurtou, só interessam as ofertas que qualifiquem a despedida

Em pelo menos 90% das vezes, variando conforme a especialidade, o convívio médico/paciente envolve expectativa de retorno à vida normal, e o melhor médico, qualificado como um técnico de excelência, é o parceiro adequado para ajudá-lo nas opções de tratamento e na seleção das escolhas diante das encruzilhadas. Ou seja, nesta condição, o enfoque é convenientemente otimista. 

A proximidade do fim inutiliza este discurso, e o paciente, que sempre sabe quando está morrendo, repudia as promessas mentirosas. E muitas abordagens de doentes terminais morrem antes da morte, na primeira frase vazia. 

Por consequência, na hora de maior carência afetiva, o paciente se percebe emocionalmente abandonado, e médico que não teve a sensibilidade de perceber a diferença se sente desconfortável. Reconhecido como inútil, se afasta.  

Quase todas as pendências emocionais estão atreladas a ofensas bobas, picuinhas ridículas, amores omitidos e afetos negligenciados.

Esse momento mágico da relação médico/paciente precisa ser construído e respeitado, com a percepção de que, tendo chegado ao muro do fim da vida, não tem mais encruzilhadas, e com este paciente só se pode falar do muro para trás. Como o tempo encurtou, só interessam as ofertas que qualifiquem a despedida. E neste transe, nada é mais importante do que o perdão, porque quase todas as pendências emocionais do fim da vida estão atreladas a ofensas bobas, picuinhas ridículas, amores omitidos e afetos negligenciados. Priorizar o controle do sofrimento físico e se oferecer para intermediar o resgate das relações amorosas dispersadas pelo caminho colocam o médico, emocionalmente bem resolvido para este desafio, num nível superior desta maravilhosa profissão

Em todas as relações, estamos sempre perseguindo interlocutores capazes de ouvir o que precisamos dizer e retribuir com palavras que movam com reciprocidade os nossos sentimentos, muito especialmente quando estamos solitários e assustados. 

Um dia desses, resolvi chamar a atenção dos estudantes para a importância dos cuidados paliativos, considerando que mais de um milhão dos brasileiros que morrerão neste ano terão uma morte anunciada e precisarão de quem os proteja da solidão. A reação dos jovens foi de horror com a ideia de cuidar de pessoas que não têm salvação. Recomendei que lessem urgentemente A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, que elabora com genialidade o desterro do sofrimento solitário e a descoberta gratificante de Guérassin, um campesino escalado para cuidar do patrão quando ele já não tinha condições mínimas de autonomia, e que se revelou o parceiro mais confiável, capaz de ser sincero em assuntos que os médicos e a família só faziam mentir. Tolstoi descreveu como ninguém a extrema solidão de quem, estando às portas da morte, tem de suportar as promessas falsas de quem não entende que o fim da vida é o território da verdade definitiva porque derradeira.  

O Evandro, um amigo de longa data, tinha sido submetido a um transplante de fígado e desenvolveu um câncer de pulmão, claramente inoperável na primeira avaliação. Fui visitá-lo no hospital e o encontrei rodeado de familiares que contavam histórias divertidas do veraneio passado. A alegria do grupo pelo aparente o fim da pandemia, e o entusiasmo pelas próximas férias, contrastava de tal maneira com a situação dele, que das duas, uma: ou não percebiam o quanto ele estava doente, ou a ausência do Evandro não faria falta nas futuras noitadas no Conrad. 

Quando ficamos a sós, ele perguntou: “Eu estou morrendo, não estou?”. E então retribui: “Se você quer falar sobre isso, estou aqui para te ajudar!”. Pela firmeza com que segurou minha mão, senti o significado pleno de se oferecer disponível em qualquer dia futuro. Até que não houvesse mais nenhum.

GZH faz parte do The Trust Project
Saiba Mais
RBS BRAND STUDIO

Show dos Esportes

20:00 - 22:00