A morte dos pais, além de eliminar as nossas referências afetivas mais antigas e mais sólidas, ainda traz um recado: como a fila andou, a ordem dos personagens tem que se modificar. E vários relatos apontam a mudança na linha de frente, como uma experiência que pode ser considerada sutil, mas é sempre desagradável.
Quando assumida com a naturalidade que só as crianças conseguem imprimir, o modelo parecerá muito mais didático.
A mãe de um amigo querido era, com 71 anos, uma mulher ativa e aparentemente saudável, que se mantinha trabalhando, quando foi fulminada por um infarto e morreu diante de seus funcionários, durante uma reunião administrativa. Perplexos com a terrível perda, instalada sem preâmbulos, e sacudidos por uma nova realidade, com a dor do nunca mais tendo que ser elaborada de improviso, meu amigo, a esposa e dois filhos pequenos voltavam do cemitério naquele silêncio que mistura dor, pasmo e soluço.
O luto é mesmo elaborado com os sentimentos que temos, sem dissimulações, e permite até decoração com recursos cênicos ou com cantorias.
No banco de trás, não havia lágrimas. Só incompreensão. E então o silêncio constrito foi quebrado com a descoberta do caçula que, na inocência dos seus cinco aninhos, anunciou:
— Bom, agora primeiro vai o pai, depois a mãe, depois o mano e só depooois que vou eu!
Dito isso, com um enorme estoque de dura realidade liberado assim de supetão, voltou a silêncio.
O primeiro encontro com a morte, que é chocante em qualquer idade, nunca é completamente entendido na infância, o que justifica que, horas depois do enterro, as crianças voltem às brincadeiras usuais.
E não há nada de errado nisso. O luto é mesmo elaborado com os sentimentos que temos, sem dissimulações, e permite até decoração com recursos cênicos ou com cantorias em diferentes civilizações, ou ainda, num modismo mais recente em nossa cultura ocidental, com uma calorosa salva de palmas.
Uma tarde, meu passeio no gramado de um enorme parque municipal em Nassau, nas Bahamas, foi interrompido pela chegada de um cortejo fúnebre. Enquanto o féretro avançava numa charrete puxada por um único cavalo, a multidão formava uma concha, todos de mãos dadas, entoando blues, com aquela voz linda que só os negros têm. O tom mais agudo da cantoria anunciou a proximidade do sepulcro, e então a concha se fechou formando um círculo. Todos seguiam cantando e chorando. Queria ter cantado, mas só chorei, por pura solidariedade, sem nem saber quem estava no centro daquele choro.
Quando, no início de março, minha mãe adoeceu de morte, resolvemos, para afastar as queixas de cansaço e dor, explorar a sua paixão musical. Então, selecionamos as músicas de que ela mais gostava, dando ênfase ao bandolim, instrumento que ela tocara na juventude. Por isso, Naquela Mesa, uma homenagem do seu filho a Jacob do Bandolim, com a Zélia Duncan, fazia parte obrigatória do nosso roteiro musical. A primeira metade desse arranjo, que dura 4min16s, é apenas instrumental, e ela me confessou que bastava fechar os olhos para ser transportada para uma época em que a morte estava fora de cogitação. A sua música preferida, A Noite do Meu Bem, de Dolores Duran, que tinha que ser cantada pela Ângela Maria, encerrou com emoção a cerimônia de despedida em seu velório.
E guardei-a como uma doce reserva técnica para o tempo que durar a necessidade de chorar, de vez em quando.