Nunca cometa a insanidade de subestimar a força moral dos misericordiosos. Eles são superiores e se alimentam da energia inesgotável de fazer o bem, este combustível que dispensa aditivos.
Em português, o termo “misericórdia” vem da junção de duas palavras latinas, no caso, miseratio, que deriva de miserere e significa “compaixão”, e cordis, que significa “coração”. Logo, misericórdia significa algo como “coração compadecido”, no sentido de ter compaixão pelo sofrimento e a dor de alguém.
Preparando uma conferência na universidade e estimulado por uma crônica do Pondé, fui à cata dos comentários rabínicos da Criação, onde reza a lenda que, lá no início, quando Deus, pensando em criar o homem e a mulher, resolveu consultar seu parlamento sobre se devia ou não fazê-lo. Primeiro, ouviu a Justiça, que O desaconselhou: “Eles vão criar problemas, não vão te obedecer, isto aqui vai virar um inferno, desista da ideia”.
A seguir, buscando um contraponto, chamou a Misericórdia, que argumentou: “Olha, é provável que eles tragam algum incômodo sim, mas tenho certeza de que algumas vezes eles serão tão maravilhosos que vai valer a pena”. Então, Deus teria tomado a Misericórdia nas mãos e jogado ao chão com toda a força para que se estilhaçasse em mil pedaços, e sentenciou: “Eu vou criar o homem e a mulher, mas eles vão passar a vida catando cada pedaço de misericórdia espalhado sobre a terra”.
A sentença era explícita: como somos seres imperfeitos e pretensiosos, arrogantes e egoístas, incapazes de almejar o bem absoluto, estamos fadados ao erro, a enfiar os pés pelas mãos, a fazer coisas que desagradam aos outros, a sentir inveja e ódio, ou seja, estaremos sempre dependendo da generosidade alheia para sermos perdoados. E ninguém discute que só merece perdão quem for capaz de perdoar.
A agressividade crescente e a intolerância latente em cada gesto do outro sugerem que, ou estamos imunes ao sentimento de culpa, ou não estamos nem aí para sermos ou não perdoados.
Tenho a sensação de que a grande qualificação da medicina, determinando a progressiva protelação da morte, tem estimulado um conceito equivocado: a longevidade não é sinônimo de eternidade, ainda que haja um número crescente de interessados em confundi-la.
O certo é que estamos cada vez menos preparados para a despedida. Refugiados nas redes sociais, associamo-nos à maior usina de ilusões, e na disputa por ver quem fantasia melhor falando bem de si mesmo, estaremos sempre a um passo de acreditar que “essas coisas referidas aí acima nunca acontecerão comigo”!
E, nesse processo de negação protetora, vamos construindo o pior binômio emocional para o adeus: a aliança da tristeza da doença com a tragédia da solidão.