Melhor ter cuidado com o que os afoitos chamam de futuro. Achar que tudo o que é novo significa progresso é deslumbramento, e compactuar com o que existe é comodismo. Alcançada essa fase da vida em que a crítica contundente e o elogio exagerado, de tanto andarem juntos, se fundiram, a convicção definitiva é que nada atrapalha mais o sossego da maturidade do que a cumplicidade silenciosa diante do que repudiamos.
Depois de batalharmos décadas em prol de uma medicina mais afetiva e personalizada, denunciando o distanciamento gradual dos pacientes que os estudantes já vêm experimentando, com as antigas discussões à beira do leito transferidas para a sala dos computadores, foi triste descobrir que estamos apenas iniciando uma nova era: a da medicina sem o paciente. A menos que alguém classifique como atendimento médico aquele diálogo meio esquizofrênico entre uma criatura ansiosa, porque se supõe doente, e um potencial terapeuta, mais preocupado em conseguir um bom foco do Skype, e a regulação do som ambiente, depois de resolvida a questão da validação dos dados do cadastro, incluindo a aceitação do número de parcelas no cartão de crédito.
Nem precisa ser muito criativo para imaginar a gama de situações embaraçosas, previsíveis nesse arremedo grotesco, que não consigo chamar de relação médico-paciente:
– Doutor, muito obrigado por aceitar incluir meu nome na agenda, assim de uma hora para outra. Estou vendo que o senhor é bem novinho. Estou meio nervoso, então pedi para minha mulher ficar aqui comigo, porque ela entende mais de doença e desse negócio do computador do que eu.
– Tudo bem. Mas o senhor entendeu que a consulta é para uma pessoa só?
– Sim, mas de vez em quando ela pode me ajudar, não pode?
– Vamos ser mais objetivos: qual é a sua doença?
– A doença o doutor vai ter que descobrir, o que sinto é uma coceira nas pernas, que me enlouquece quando esquenta o corpo!
– O senhor vai ter de colocar a câmera focada na sua perna. Sem ver o tipo de lesão não dá para receitar nada.
– Então vou pedir para a minha mulher calibrar esta coisa, momentinho. Paciência, doutor, ela está tentando, mas parece que o cabo está meio frouxo. Só um pouquinho.
– Bom, o que eu vejo aqui é uma perna lisa, bronzeada e sem lesão. Onde lhe coça, afinal?
– Bronzeada? Mulher, acho que a gente está mostrando a tua perna para o doutor!
– Desculpe, doutor. O suporte do aparelho está meio frouxo, mas já que o senhor viu a minha perna, pode me dizer se essas veias fininhas dá para esclerosar?
– Minha senhora, achei que tinha sido claro! A consulta é para um paciente com problema de pele. Na próxima vez, quando atenderem, peça cirurgia vascular. É o mesmo preço, e como será no nome de outra pessoa, acho que o plano não vai negar o reembolso.
Ou então:
– Doutor, deixei aí na clínica os exames que o senhor pediu na semana passada, e estou com um pressentimento ruim. Se for câncer, não me diga, doutor, sou capaz de me matar!
– Bem, eu, eu, eu acho melhor o senhor marcar uma consulta presencial, que é mais cara, mas a gente vai ter mais tempo de conversar. Se o senhor ligar agora, eu vou poder vê-lo logo depois do feriado da semana que vem. Boa tarde!
Tóin, tóin, tóin.
Não é possível que alguém ache que possa ser assim. Ninguém abraçará um computador ao sentir medo. Ficar doente já é ruim demais. Acrescentar solidão é crueldade.
Sabe por que não há outro jeito de ser médico? Porque a compaixão nunca será um sentimento virtual. Ela não se contenta em ser vista. Ela precisa ser tocada.