A transformação da covid-19 e todas as suas consequências em mercadoria política, traficada de um lado para outro por governantes para tirar vantagem pessoal da desgraça comum, está sendo exposta ao público mais do que nunca, e já sem disfarces, com a irada polêmica que envolve no momento a vacinação – e, mais do que tudo, a vacina chinesa Coronavac, ou a “vacina do Doria”, fruto de um negócio entre a China e o governo de São Paulo.
É uma história que começou mal, e não melhorou. A compra, feita sem licitação pública – como todas as outras atividades comerciais geradas pela covid – envolve contratos que têm partes inteiras ocultas pelo sigilo. Informações importantes para a sua avaliação não podem ser dadas à comunidade médica, por serem mantidas em segredo pelos fabricantes. Não houve exames independentes de sua composição e de seu desenvolvimento, através de organismos científicos internacionais. Não foi aceita e nem está sendo aplicada em nenhum país desenvolvido e com boa reputação no trato da saúde pública.
Agora, com a necessidade de apresentar dados objetivos à Anvisa, a coisa toda desandou de vez. De um lado, o governo paulista e o Partido Nacional da Quarentena Ampla, Geral e Irrestrita exigem, até na Justiça, a liberação “imediata” da CoronaVac. De outro, após muita demora e adiamento na apresentação de dados à Anvisa, passaram a surgir, umas após outras, informações negativas sobre a sua real eficácia.
A salada de números se torna definitivamente enigmática quando cientistas independentes, de um lado, e o governo paulista (através do seu Instituto Butantan), de outro, exibem diferentes critérios e métodos de avaliação. Some-se a isso os palpites dos militantes, dos ministros do STF e da mídia, e estamos em pleno nevoeiro.
Quanto mais a situação fica obscura, mais radical se torna a rixa político-eleitoral que acompanha a covid-19 desde o primeiro caso no Brasil. Depois de muita briga de sarjeta pela “vacinação obrigatória”, já se fala que é indispensável “calar as vozes antivacina”. Ao mesmo tempo, gestores do governo de São Paulo afirmam em público que “não é hora” de ser “científico demais” – depois de terem jurado, durante meses seguidos, que a vacina chinesa era ciência pura.
“O importante é aprendermos a separar o que é ciência, e a honestidade intelectual esperada de cientistas, das promessas políticas dos governantes”, disse o biólogo Fernando Reinach, PHD em biologia celular e molecular pela Universidade americana de Cornell, em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo. Reinach é um dos mais respeitados cientistas do Brasil. Em relação ao diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, uma das estrelas da gestão Doria na Covid, o biólogo é especialmente claro. “Para mim”, escreveu ele, “Covas deixou de ser um cientista e passou a ser político, um vendedor de ilusões.”