Foram necessários seis anos para ser fechado o inquérito sobre as mortes da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes. Ambos foram metralhados em 14 de março de 2018, numa movimentada avenida do Rio de Janeiro. A investigação passou por cinco delegados da Polícia Civil, pelo Ministério Público Estadual e, finalmente, foi para a Polícia Federal, que concluiu: os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, famosos por envolvimento com milícias paramilitares, contrataram um grupo de ex-policiais para assassinar a vereadora. Os resultados foram apresentados pelo Ministério da Justiça no domingo (24).
Muito se especulou de que Marielle fora executada por ser negra ou por militar em defesa dos direitos LGBTQIAP+ (ela era casada com uma mulher). A investigação da PF aponta motivos menos ideológicos e mais pragmáticos. A vereadora teria sido assassinada por atrapalhar negócios imobiliários da milícia comandada pelos irmãos Brazão (Domingos é conselheiro do Tribunal de Contas do Rio, Chiquinho é deputado federal pelo União Brasil).
Com relação à autoria, não existiam dúvidas. Dois envolvidos diretamente na emboscada, os ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio de Queiróz, confessaram os crimes durante acordo de colaboração premiada com a Justiça. Contra eles já pesava rastreamento de celulares e de mensagens na nuvem do WhatsApp, nos quais contratavam outros comparsas, conseguiam um veículo e falavam de armas, tudo recuperado pela PF. Decidiram falar, para diminuir a pena.
Mas o que pesa contra os irmãos Brazão e, sobretudo, contra o ex-chefe da Polícia Civil do RJ, delegado Rivaldo Barbosa, que também foi preso domingo (24)? O colunista se debruçou sobre as 479 páginas do relatório da PF. Não encontramos ali uma prova decisiva, uma frase cabalística do tipo "matem Marielle". O que existe é um elenco de indícios que já se mostrou suficiente para convencer o relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Alexandre de Moraes, a determinar a prisão dos três peixes graúdos. As detenções foram determinadas porque ele se convenceu que, soltos, os três supostos mandantes são capazes de sumir com provas e testemunhas.
Veja aqui o elenco de indícios pelos quais a PF considera fechado o inquérito:
DELAÇÕES RICAS EM DETALHES
Dois matadores foram presos pela Polícia Civil e viraram colaboradores da PF. O primeiro a se tornar colaborador premiado foi o ex-PM Élcio de Queiróz, cujo celular foi rastreado nas proximidades do crime e que era conhecido como matador de encomenda. Ele rememorou a busca por um carro "frio" para cometer a emboscada, falou que Marielle foi seguida por dois meses, até aparecer uma oportunidade clara de execução. O ex-policial jura que não apertou o gatilho, mas que aceitou o serviço por estar endividado.
O segundo delator é o ex-PM Ronnie Lessa, autor assumido da rajada de metralhadora que matou Marielle e o motorista Anderson, cujo papel foi revelado pelo comparsa Élcio. Premido por provas que incluem rastreamento de celulares e de veículos, assumiu o duplo assassinato e relatou, em detalhes, que o crime foi encomendado pelos irmãos Brazão. Ele disse que o grupo político deles, muito forte na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, queria regularizar terrenos para usá-los com fins comerciais, enquanto o grupo da vereadora do PSOL queria usar essas terras para fins sociais, de moradia popular. Chiquinho Brazão teria esboçado uma reação colérica ao ter um projeto de legalização dos imóveis barrado por iniciativa de Marielle.
Lessa detalhou diversas reuniões com os Brazão, nos quais lhe teriam sido prometidos imóveis e dinheiro para consumar o assassinato. Ele também comprometeu na trama o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa, que teria nomeado o delegado de Homicídios, entre outros motivos, para disfarçar a trama da execução de Marielle. O ex-policial militar fala que a Divisão de Homicídios era "um balcão de negócios" pelo qual, mediante pagamento de propina, eram encobertos assassinatos cometidos por milicianos.
OS INTERESSES DA MILÍCIA CONTRARIADOS
A PF reuniu diversos testemunhos que apontam que a milícia controlada pelos irmãos Brazão era a principal contrariada pela atividade de Marielle. Isso porque planejava construir prédios em terrenos que a vereadora queria destinar a pobres sem moradia, sobretudo no subúrbio Rio das Pedras.
MILICIANOS APONTAM OUTROS MILICIANOS
Em celulares apreendidos de milicianos, eles relatam que a Divisão de Homicídios teria forjado denúncias anônimas que comprometeriam o então vereador Marcelo Siciliano e o miliciano Orlando Curicica com o assassinato de Marielle Franco. Note-se que as mensagens estão em telefones apreendidos, não em depoimento - ou seja, eram verdadeiras. Uma testemunha teria prestado depoimento, mediante propina, comprometendo o parlamentar e Curicica com a morte da vereadora. Ouvido, Curicica virou a mesa. Falou que existia um esquema de pagamento mensal de suborno aos policiais civis da Homicídios. A soma chegava a quase R$ 700 mil e era paga por um pool de chefes de milícia, para acobertarem investigações de assassinatos. Ele inclusive cogita que seu nome surgiu no caso por encomenda de rivais milicianos. Ouvidos, alguns policiais civis confirmaram "sumiço" de inquéritos sobre mortes de bicheiros.
SUMIÇO DE PROVAS E FALSO TESTEMUNHO
O homem que teria clonado placas do Cobalt usado para transportar os assassinos de Marielle foi localizado e preso por policiais de Homicídios. Ele admitiu ter vendido o carro a milicianos, que o repassaram aos ex-PMs que mataram a vereadora. O vendedor do veículo teve o celular apreendido pelos policiais civis da Homicídios, só que o aparelho sumiu. O titular da divisão de Homicídios, delegado Giniton Lages (indicado por Rivaldo), nunca apresentou o aparelho ao Ministério Público, mesmo sob insistentes pedidos por escrito. O aparelho não foi mais encontrado.
O homem que vendeu o carro aos milicianos, Eduardo Siqueira, disse que foi coagido por policiais civis da Homicídios a reconhecer pessoas que não conhecia. Entre elas, Orlando Curicica, miliciano da Zona Oeste do Rio e suspeito, no início, de ter arquitetado a morte de Marielle.
O ENRIQUECIMENTO DO POLICIAL CIVIL
Minucioso levantamento da PF aponta que o ex-chefe de Polícia Rivaldo Barbosa multiplicou várias vezes seu patrimônio. Ele teria adquirido diversos imóveis e colocado em nome de familiares, assim como empresas. A perícia federal demonstrou também movimentações financeiras incompatíveis com o salário de um delegado. Sobretudo, na época do assassinato de Marielle.
Tudo isso fecha com o relato dos delatores, de que Rivaldo recebia das milícias para ocultar homicídios e não para desvendá-los. E com o sumiço de algumas provas decisivas em casos de assassinato investigados.
Não há uma frase decisiva a comprometer os que foram presos no fim de semana, como é comum em casos complexos. O que existe é um contexto no qual várias situações apontam motivações que levaram à morte de Marielle Franco, resume o delegado Andrei Rodrigues, diretor-geral da PF.
Os indícios foram tão convincentes que o STF manteve a prisão preventiva dos indiciados.