Frustrou muita gente — talvez até os réus — a suspensão do julgamento de um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que decidirá se deve ser mantido o júri que condenou quatro pessoas pelo incêndio na boate Kiss, ocorrido em Santa Maria em 2013. O adiamento ocorreu durante sessão na terça-feira (13) e provocou desânimo nos familiares das vítimas da tragédia, a maior já registrada no Rio Grande do Sul.
Quanto falta para saber se haverá novo júri? Os integrantes da 6ª Turma do STJ têm até 90 dias para decidir, informa o colega Matheus Schuch, desde Brasília. Só que, cientes da gravidade do caso que analisam, os ministros Antonio Saldanha Palheiro e Sebastião Reis (que solicitaram vista na papelada do caso) cogitam dar seu voto em até duas semanas, para que a decisão saia antes do recesso do Judiciário (em julho). Eles anunciarão virtualmente quando o voto estiver pronto. Outros dois juízes também devem votar: Laurita Vaz (presidente da turma que analisa o recurso) e o desembargador convocado Jesuíno Rissato.
Recordando os trâmites, que parecem novela: os quatro acusados (dois donos da boate e dois integrantes da banda que se apresentava na hora do incêndio) foram condenados, em júri em 2021, a penas que variam de 18 a 22 anos de reclusão. Os jurados interpretaram que tanto os empresários como os músicos tinham consciência de que o uso de artefato pirotécnico que provocou o incêndio poderia ter sido evitado, mas mesmo assim a prática, usual em apresentações na boate, foi mantida. A sentença foi por homicídio qualificado de 242 pessoas e tentativa de homicídio contra 636 pessoas, que resultaram feridas ou com saúde abalada pelo fogo na danceteria.
Só que o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), em 2022. Desembargadores apontaram uma série de irregularidades formais, anteriores ao julgamento: três sorteios para quem seriam os jurados (e não apenas um, como é o usual), ocorrência de uma reunião reservada dos jurados com o magistrado que julgaria o caso (sem a presença de defensores dos réus), formulação supostamente equivocada de perguntas a que os jurados teriam de responder e também o acesso por parte do Ministério Público ao banco de dados Consultas Integradas, o que permitiu que a acusação impugnasse dezenas de possíveis jurados que já tinham visitado parentes ou amigos no sistema prisional (sendo que o banco de dados não é acessado pela defesa dos réus). A anulação atendeu a pedido dos defensores dos acusados.
O Ministério Público insiste na manutenção do resultado do júri. Um recurso nesse sentido, no STJ, já começou a ser julgado (na terça-feira) e foi interrompido porque dois ministros da Corte têm dúvidas sobre o caso. Outro recurso, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), alega falhas constitucionais na anulação do júri e ainda não tem prazo para ser votado. Aliás, se o STJ tornar novamente válido o júri, a causa no STF nem será julgada, porque perde o objetivo.
A grande questão por trás desse adiamento é que ninguém aguenta mais a falta de um veredito definitivo sobre o caso. É uma agonia para os familiares das vítimas (que há mais de uma década clamam por justiça) e, de certa forma, para os próprios acusados, que entraram e saíram da prisão algumas vezes nesses 10 anos. Eles têm sua trajetória vivida aos solavancos.
A esperança dos defensores dos réus, claro, é que num segundo júri eles sejam absolvidos. Porque a outra opção, pegarem uma pena menor por homicídio culposo (eles alegam que não sabiam dos riscos de incêndio), é quase nula. Os tribunais superiores já decidiram que o caso é de homicídio doloso eventual (os acusados tinham noção do perigo da boate incendiar e agiram contribuindo para isso). Casos assim são julgados por júri popular.
Há quem veja na profusão de recursos uma estratégia dos advogados para tentar que seus clientes escapem da cadeia por decurso de prazo. Duvido, porque é muito difícil que consigam adiar a decisão por 20 anos. E todos sofrem, enquanto isso.
O voto do relator do recurso no STJ deu esperança aos familiares de vítimas da Kiss. O ministro Rogério Schietti rebateu uma a uma as alegações que levaram à anulação do júri. Ele diz que não verificou "mácula" no julgamento e concluiu:
— Para declarar nulidade de um processo judicial, é necessário comprovar prejuízo ao réu. Com argumentos plausíveis e não apenas retóricos.
O relato de Schietti pode ter surpreendido alguns colegas, que pediram para olhar melhor o processo. Agora é esperar o desfecho, sempre dramático, para um ou outro lado.