O expurgo de 50 mil pessoas de seus empregos na Turquia mostra o quanto a vingança pode ser um prato quente, devorado mesmo por aqueles que foram eleitos nas urnas. É o caso do presidente turco, Recep Erdogan. Em quatro dias, ele comandou um ataque a opositores que resultou na inviabilização da vida profissional para milhares de professores, reitores, policiais, militares, juízes, promotores e servidores públicos de todos os escalões. Adversários reais ou imaginários do mandatário turco, eles tiveram seus crachás confiscados e seus contratos de trabalho suspensos. Terão de provar que são inocentes do complô de afastar o presidente, numa situação kafkiana de inversão do ônus da prova e dos direitos do acusado.
Falta pouco para que Erdogan atinja, em menos de uma semana, um patamar de perseguições políticas equivalente ao alcançado em 21 anos de ditadura militar no Brasil. Só não fechou o Congresso e extinguiu partidos políticos... ainda. Tampouco parecem ter ocorrido execuções sumárias, porque os esquadrões da morte, comuns no passado, já não estão ativos. Mas o medo impera numa Turquia que há décadas vivenciava democracia a pleno e, até por isso, é um dos destinos turísticos mais visitados da Europa/Ásia.
Até por ser uma democracia, a Turquia não viveu a explosão de descontentamento que ficou conhecida por Primavera Árabe. Vizinhos dos árabes, porém, os turcos assistiram de camarote – e apoiaram – a queda em dominó de ditaduras em todo o Oriente Médio. Foi o que aconteceu na Tunísia, Líbia, Egito e Iêmen. Na Síria, colada à Turquia, o autoritário presidente Bashar Assad resiste há cinco anos a uma rebelião que já causa centenas de milhares de mortos (e a maioria dos rebeldes têm na Turquia seu ponto de partida). Os turcos não ficaram imunes ao vendaval político que varreu a região.
Cobri a Primavera Árabe por Zero Hora, junto com dois colegas. É triste ver que o sonho de liberdade, naquela região marcada por décadas de tiranias, deu lugar a um presente nebuloso e a um futuro que se anuncia sombrio. A Tunísia é a única que rumou para a democracia, apesar de assediada por terroristas. Egito e Síria eram e são ditaduras. Líbia e Iêmen atravessam guerras civis infindáveis. A repressão turca, na mesma região, mostra também que os ventos do autoritarismo ganham cada vez mais espaço no planeta. Mais uma prova de que, no xadrez da geopolítica, idealismo e pragmatismo nem sempre combinam, para desgosto dos verdadeiros democratas.