Pela segunda vez, repito o título do artigo para reiterar uma pergunta inquietante: quem Kiss a tragédia da boate de Santa Maria se não o desdém e desleixo que cultivam o lucro fácil, que a falsa fiscalização facilita?
A sentença do júri popular nem sequer tem data e virá amortecida pelo tempo, mas não apagará a tragédia. Os labirintos do processo judicial foram usados para esquecer o cerne do crime e atenuar a perversidade que matou 242 pessoas e feriu mais de 600, muitas com terríveis sequelas.
Bastaria isso para que a Justiça fosse rápida, localizando e punindo os responsáveis diretos e indiretos. Os sete anos que nos separam da madrugada de 27 de janeiro de 2013, porém, mostram o oposto. O crime e a dor não foram entendidos como agressão.
O minucioso inquérito policial indiciou criminalmente 16 pessoas, que o Ministério Público reduziu a quatro, apenas. Logo veio o disparate de os familiares das vítimas serem processados por injúria ao exigirem rigor dos promotores de Justiça, que excluíram da denúncia as autoridades envolvidas na liberação da ratoeira humana chamada Kiss.
Até a denominação da boate é falsa. “Kiss” é beijo de afeto ou amor, nunca de morte como nos filmes de terror.
O júri do único réu a realizar-se em Santa Maria, na próxima semana, foi suspenso. Persiste, porém, a anomalia maior – os demais (dos donos da boate à banda do fogaréu) terão júri em Porto Alegre, por alegarem que a cidade que viveu o horror não tem isenção para ditar sentenças.
É possível ser “isento” frente ao crime?
O incêndio da Kiss não foi um “acidente”, como pisar em casca de banana e cair, mas uma tragédia anunciada. Ali, só valia o horror – do forro inflamável ao fogaréu da banda ou à truculência dos “seguranças” impedindo sair “sem pagar o consumido”, como se a vida humana fosse a conta.
A cobiça e o desleixo de empresários sem ética uniram-se aos cegos carimbos da burocracia municipal-estadual, provocando a tragédia. Dizer que o fogaréu da banda “estava no contrato” é a mesma alegação dos carrascos nazistas, que matavam “por cumprir ordens”.
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O coronavírus inquieta o mundo inteiro e já está aqui. Só Jair Bolsonaro afirma que “tudo é exagero da mídia”, como disse em Miami, dias atrás, e a TV reproduziu em sua própria voz.
A opinião absurda torna-se perigosa ao vir do presidente da República, que jamais deveria ignorar a expansão da nova peste medieval, que afeta até um de seus auxiliares.
Por acaso, o presidente queria que, em vez de alertar, a imprensa se calasse para que o vírus matasse, aqui, mais do que o fogo na Kiss?