A ideia de que a vida está nos papéis (ou nos tecnicismos que eles contêm), e não na própria vida em si, é tão nefasta, que leva ao erro absoluto, mesmo em boa-fé. É o que vemos nos intermináveis leguleios do processo judicial da tragédia na boate Kiss, que trata o horror dos 242 mortos e 636 feridos como se fosse uma rixa entre vizinhos.
No final do próximo mês, completam-se cinco anos. O tempo dilui o horror e se alia à lentidão da Justiça para que o esquecimento transforme o crime em "acidente". Não há presos. A impunidade ronda o processo tal qual urubu faminto à espera da carniça.
E o que era o crime, se não a soma de desdém e cobiça?
Dias atrás, o Tribunal de Justiça amenizou a culpabilidade dos poucos réus que ainda restam e decidiu que não atuaram por dolo, um crime com pena maior e que os levaria a júri popular. A tragédia de 2013 feriu Santa Maria (e a todos) e mostrou como o público e o privado são cúmplices. Só isso já bastaria para um jurado decidir em nome da população.
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Dolo é o ato consciente que leva a assumir o risco de algo que resulte em crime. Os quatro desembargadores que decidiram a favor do pedido dos réus votaram "tecnicamente" e optaram pela letra fria da lei, concluindo que os processados não assumiram o risco de incêndio. Tecnicamente, podem ter razão: ninguém Kiss matar.
Mas o que era a Kiss, se não um disfarçado e superlotado patíbulo, escura ratoeira com teto e paredes recobertas de material inflamável (convidando à matança num espetáculo cuja atração eram os fogueteiros), com capangas impedindo sair pela única e estreita porta em pleno incêndio?
O risco do crime estava na realidade, não nos papéis de licenciamento. E o que era o crime, se não a soma de desdém e cobiça?
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Interpretar servilmente a lei pode nos afastar da justa Justiça. Na tragédia da Kiss, o minucioso inquérito policial indiciou 36 pessoas, abrangendo o arco que (por desídia ou suborno) licenciou a boate-sarcófago, do prefeito aos bombeiros. A promotoria pública, porém, excluiu o prefeito e outros mais. Hoje, os réus são apenas quatro _ os donos da boate e os fogueteiros da banda.
E surge, então, a perversão aberrante: três pais e uma mãe dos 242 mortos, que criticaram a atuação dos promotores de Justiça, foram processados por "difamação"…
As culpas se invertem. A seguir assim, amanhã vão punir o pranto pelos mortos e aplaudir o desleixo (ou o suborno) que gerou a matança. E só o vento dirá quem Kiss matar.