Quando vivemos no absurdo, é difícil entender a normalidade. Sinto-me assim agora em Berlim, onde participo dos debates que o Lateinamerika Forum promove em torno dos 50 anos do movimento de Maio de 1968, que (na Europa e no mundo) mudou a visão de liberdade e da própria vida, numa dinâmica que – bem ou mal – se estende até hoje.
Na capital alemã, o primeiro detalhe visível é o trânsito tranquilo, todas as ruas com mão dupla, dobrando-se à esquerda ou à direita sem buzinar. Poucos carros e muitas bicicletas são frutos do excelente transporte público. Metrô, trens, ônibus ou os modernos bondes do lado oriental da cidade são administrados pela prefeitura. Passam de dois em dois minutos, as estações ou paradas têm internet e, com a mesma passagem, muda-se de linha ao longo de duas horas. Tudo é público e nada é deficitário. Os lucros se reinvertem modernizando os serviços.
Por que eles podem e nós somos incapazes? Em Porto Alegre, nossa Carris tem milionários prejuízos ano a ano, e a corrupção escancarada usou até um menino morto há anos para dissimular o roubo. Ou roubaram para abastecer o PMDB e outros partidos, com o então prefeito Fortunati "sem saber de nada", como ele próprio disse.
O que é público será mau por isto? Ou "os três D" (déficit, descaso e desatenção) são frutos da nossa visão doentia de que o público "não é de ninguém" e, assim, podemos malbaratar e assaltar?
***
Se nós não entendemos os berlinenses, eles tampouco compreendem nosso bizarro cotidiano. Contar dos tiroteios de rua no Rio, em São Paulo ou em Porto Alegre, ou explicar que as gangues do narcotráfico são um violento poder paralelo ao poder público, é falar de uma guerra civil mais criminosa do que as guerras brutais que a Europa viveu.
Nossa guerra nem sequer invoca a falsa visão de “patriotismo” das bandeiras e fardas. Guerreia só por cobiça com a finalidade única de matar, com droga ou com tiros.
Em Potsdam, região luterana junto a Berlim, contei a um grupo religioso que, no Brasil, qualquer pessoa "abre uma igreja" e arrecada milhões em nome da Divindade e que tudo está previsto em lei. Todos riram, pensando que fosse piada. Ou que eu construía uma metáfora em torno do sagrado.
De Berlim, irei à capital da República Tcheca para recordar a Primavera de Praga, que, em 1968, deu um rosto humano e terno ao socialismo, até o país ser invadido pelos soviéticos. O trem confortável é de uma empresa estatal, sem déficit e sem pensar na Carris...