* Jornalista e escritor
A neblina intensa e contínua, que embranquece o ar e enegrece vultos ou objetos, me faz estar em Londres. Pela manhã e, já a partir do entardecer, olho pela vidraça e a névoa (cerrada como cerração ou etérea como neblina) ali está escondendo o Tâmisa.
Neste inverno voltamos a ter aqui o Tâmisa, ainda que mais frondoso do que o riozinho que a rainha Elisabeth vê do palácio. Com igual dimensão, poluição e maltrato do Guaíba, nosso rio só pode ser o Guaíba, mas com a cerração parece o Tâmisa que se mudou para cá e se instalou também em Pelotas e Rio Grande. Décadas atrás (e por séculos) escurecia Londres ao meio-dia com o "fog" contaminante das indústrias. Foi saneado e já não asfixia. Reeducou-se, cursou universidade e doutorado.
Lá, hoje, o "fog" vem apenas da névoa do inverno, não do inferno da poluição.
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Não só Londres, também a Inglaterra às vezes passa por aqui.
A serenidade e calma típica inglesa esteve entre nós na última quinta-feira, na reunião em que luteranos e católicos marcaram, em Porto Alegre, os 500 anos da Reforma Religiosa de Martinho Lutero.
Nenhuma palavra de reprimenda. Só diálogo. Começou pelo cenário - a Igreja da Reconciliação, sede da Igreja Evangélica de Confissão Luterana – e desembocou nos palestrantes, o arcebispo dom Jaime Spengler e o pastor Nestor Friedrich, presidente da IECLB. O patrocínio do Grupo de Empreendedores Evangélico-Luteranos e da Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas ampliou o nível de entendimento. Assim, desponta como modelo a adotar numa sociedade em que competir e subjugar se torna (cada dia mais) perigoso hábito ou norma.
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Limito-me a breves citações dos palestrantes. Dom Jaime lembrou que "a experiência cristã é uma questão de amor" e que "o sentido de Deus se ausentou do cotidiano", com o que "a vida religiosa é vista, até, como possibilidade de negócio". Aludia aos simulacros de igrejas distribuidoras de "milagres" a peso de ouro. Mais do que tudo, sugeriu "nos despojarmos das armaduras enferrujadas pelo tempo", pois "o fundamental é amar".
O pastor Friedrich acentuou a necessidade do debate, pois "dialogar é resistir", como o fez Lutero há 500 anos: "Não celebramos vitória alguma, mas a reconciliação, pois o conflito deve ser tomado tão a sério quanto o entendimento e a comunhão", frisou, lembrando existir "um mercado religioso", com venda de 'franquias de igrejas', inclusive. "No tempo de Lutero, o medo era ir para o inferno, hoje vazio pois ninguém assume nada", completou.
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Volto à cerração, ao rio Tamisa e a Londres. Como lá é verão, a neblina do inverno deles está toda aqui e o clima enlouqueceu. Em 24 horas temos as quatro estações.
Assim, como formiguinha que se previne para os tempos incertos, nosso formigão-rei armazena repasto para resistir à perseguição do procurador-geral da República, que procura investigá-lo por aquelas intimidades com os irmãos da Friboi e outras ocultas irmandades.
Nosso Michel I obteve o trono como no teatro de Shakespeare - o pretendente apunhala os vassalos antes de envenenar a rainha e usurpar o poder. Por isto nosso Rei se cuida. Verbas, favores, louvores, loucuras, todos pendores e juras fiéis de amores servem de saboroso mel para que os deputados digam "não" à ideia do procurador-geral de saber das noites ocultas do Rei do Brasil.
Para se amarrar ao trono, só nos últimos dias, nosso Rei distribuiu mais de R$ 2 bilhões e meio aos deputados nas tais "emendas orçamentárias". Dinheiro nosso, licitamente posto no orçamento da República para ilícito usufruto dos currais eleitorais.
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Soltar a dinheirama, porém, depende do rei. Nisso, Nossa Majestade é majestoso. Já o mostrou nas intimidades com os irmãos da Friboi, gravadas ou não. Lástima é Temer não ter feito curso de etiqueta em Londres no Palácio de Buckingan com a rainha ou o príncipe herdeiro. Podia até ser sob névoa, que resistiria.
A cerração mais perigosa e destrutiva não é a da névoa, mas a que nos cerra os olhos e nos faz robôs da cobiça fanática, sem capacidade de dialogar.
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