A morte é sempre maior do que a vida. Talvez seja difícil entender, pois festejamos o nascer, nunca o fenecer, mas é o morrer que nos dá a dimensão de quem partiu. A ausência é que define o que alguém foi em vida, pela falta que faz e pelo que nos transmitiu.
Dias atrás morreu Mário Soares e a grandeza da sua trajetória como primeiro-ministro e presidente da República de Portugal, lá no outro lado do oceano, me leva ao pranto ao compará-lo com o que temos aqui. Socialista e sem dogmas, ele não foi só um dos restauradores da democracia após meio século da ditadura direitista que fez de Portugal um país atrasado, que vivia às custas das ricas colônias na África. Foi, ainda, um dos raros estadistas a entender o horror da ''guerra fria'' em que Estados Unidos e União Soviética se ameaçavam com arsenais atômicos.
Em abril de 1974, os jovens capitães do exército lusitano (todos de esquerda) depuseram a ditadura e ele voltou do exílio na França. Nomeado ministro do Exterior, no dia seguinte viajou à África e sentou as bases da independência de Angola, Cabo Verde, Guiné e Moçambique, pondo fim à matança da guerra colonial.
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A independência das colônias mudou o mapa-múndi e a correlação de forças da geopolítica. As grandes potências tiveram de dar atenção a um ''Terceiro Mundo'' ampliado, que desafiava o nojento e poderoso ''apartheid'' da África do Sul, que os EUA e o Ocidente apoiavam.
Em 1975, a ala militar pró-comunista (e pró soviética) passou a comandar o governo luso e, em Washington, Henry Kissinger decidiu invadir Portugal a partir das bases navais que a aliança militar da Otan lá mantinha. Soares pressentiu que seria o início da hecatombe nuclear e decidiu agir, mesmo fora do governo. O Partido Socialista mobilizou-se nas ruas e abriu caminho para a esquerda-militar não vinculada a Moscou retomar o poder no final do ano.
Hábil e pertinaz, Soares derrotara de uma só vez os dois poderosos K da época – Kissinger e o Kremlin.
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Lisboa foi meu último ponto de exílio, em janeiro de 1978, e aí conheci o lado humano do primeiro governante surgido de eleições livres em meio século em Portugal. Do aeroporto, o carro do primeiro-ministro me levou ao Palácio de São Bento e Soares quis saber detalhes das prisões no Brasil e no Uruguai, de onde eu vinha.
Ele, antes exilado na França e Alemanha, entendia melhor do que ninguém a agrura de viver longe da pátria tendo a pátria dentro de si a cada minuto. Dias antes, ele dera abrigo também a Leonel Brizola e a restauração das liberdades no Brasil passou a estar em seus horizontes.
Foi ele quem levou Brizola à Internacional Socialista e a Willy Brandt, que pouco antes deixara a chefia do governo alemão. Em 1979, Soares patrocinou o ''Encontro de Lisboa'', reunindo o exílio e o Brasil para criar (sob o comando de Brizola) um partido ''humanista, socialista e ecologista'' no quadro político a surgir do fim da ditadura.
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A integração com o Brasil aprofundou-se em Porto Alegre, em setembro de 1981. Por sugestão do deputado Aldo Pinto, presidente da Assembleia Legislativa, organizei um seminário sobre ''sistemas de governo'' e Soares fez a palestra inaugural para um público ávido por saber como era superar a ditadura. Caminhando nas ruas, eu lhe mostrei a cidade. Em Gramado e Canela, Valter Bertolucci o levou a um café colonial e ele, ''até no perfume do chá e das tortas'', sentiu-se como na fronteira franco-alemã.
Depois, em 2000, veio ao Fórum Social Mundial. Em 2004, em visita rápida para um seminário sobre água, me surpreendi ao vê-lo na fila de autógrafos do meu livro O Dia em que Getúlio Matou Allende, na Feira. No ano seguinte, levou-me a Lisboa, para uma palestra sobre o Brasil na Fundação Mário Soares, recém estruturada como grande núcleo cultural.
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Aqui, na pequenez que nos rodeia, o presidente entrega 61 ambulâncias e festejamos a rotina como se fosse o futuro. E insistimos no medíocre: pedimos construir um presídio federal para acomodar criminosos, em vez de exigir combater o crime na origem.
Choro pelo que somos em vida no Brasil, na saudade do estadista que morreu lá longe.
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