A catástrofe financeira do Estado exige atenção profunda, voltada ao futuro, não só em fazer que "a despesa caiba na receita", como diz o governo. Aqueles míopes que criticam o governador Sartori pelas medidas que quer tomar são linguarudos e não veem que podia ser pior.
Para equilibrar o orçamento, Sartori quer nos poupar de humilhações. Poderia fazer do Palácio Piratini um monumental shopping em estilo neoclássico, com murais de Locatelli e a escadaria de mármore convidando às compras. Ou fazer do Theatro São Pedro um garboso bailão em que o povo dançasse como baila hoje em galpões na periferia.
Ou fazer do antigo palácio, hoje o Forte Apache do Ministério Público, um estacionamento com elevadores, atendendo a quem ande pela Praça da Matriz. A arrecadação iria à Brigada para vigiar os postos de crack e outras guloseimas que ali funcionam sem proteção.
O cauto Sartori evitou tais extremos. Resistiu à tentação de (em convênio com a Prefeitura) cobrar pelo por do Sol no Guaíba. Talvez já desconfiasse que o Ministério Público pediria o bloqueio dos bens do prefeito Fortunati (pelas trapaças na Procempa) e se absteve.
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Sartori optou por outra via: desfazer-se de bens e funções essenciais e poupar centavos num déficit de bilhões.
Quer retirar o Estado da pesquisa científica, tecnológica e agropecuária extinguindo a Fundação de Ciência e Tecnologia (que implantou o polo petroquímico e desenvolveu o arroz parboilizado), a Fundação de Pesquisa Agropecuária (que aprimora técnicas agrícolas e genéticas), a Fundação de Pesquisa em Saúde (que produz remédios e informação toxicológica) e, entre outras mais, como a TVE, extinguir a Fundação de Economia e Estatística, que orienta a vida produtiva.
As funções passariam a secretarias sob controle de burocratas, não dos técnicos de hoje. Quer extinguir a Fundação Zoobotânica, que pesquisa a área ambiental e administra o Jardim Botânico e o Zoológico, a serem vendidos. O Botânico seria condomínio de luxo. O Zoológico passaria ao setor privado, talvez com micos empalhados para poupar nas bananas.
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O futuro não está nos planos de governo. Em vez de extinta, a Fundação Zoobotânica deveria ser ampliada para poder preservar a flora e fauna gaúchas ameaçadas.
Como se não tivéssemos rios e lagos, Sartori quer extinguir a Superintendência de Portos e Hidrovias, contra a visão dominante na Europa, EUA e China de priorizar o transporte fluvial. Há anos, o modelar porto da Capital foi abandonado. A zona de carga e descarga dos navios virou estacionamento de carros. Funciona só o cais de Navegantes, de calado baixo e instalações simples.
Do norte e centro do Estado, toda produção chegaria pelos rios à Capital e daí ao mar, como antes.
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O caos atual não foi construído só por Sartori. Foi processo longo, do qual são responsáveis todos os governadores, a partir do alerta de Jair Soares em 1983, ao assumir o Piratini e vislumbrar o que viria.
Sartori recebeu o enfermo com a ferida à mostra, sem ideia do que era aquilo. Parecia um novato, embora velho político. Foi deputado estadual por 20 anos, presidiu a Assembleia Legislativa, foi secretário do Trabalho e Bem-Estar Social num dos governos do PMDB, logo deputado federal e prefeito de Caxias – mas nada disto o levou à realidade que os tapetes dos palácios escondem.
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Agora, a ferida alastrou-se. O Estado não anda e ele quer sanar a chaga amputando as pernas do enfermo. Fala só em "equilibrar despesa e receita", como se o Estado fosse decadente armazém do bairro.
Já diminuiu horas de aula nas escolas, como se ensino e educação fossem coisas desprezíveis. Agora, quer vender a CEEE, já retaliada nos últimos anos. Em 1956, o governador Meneghetti resistiu ao assédio da Amforp e manteve o pioneiro Noé de Freitas na Comissão Estadual de Energia, que Brizola transformou em companhia, ao nacionalizar a empresa norte-americana em 1959.
O governo projeta arrecadar R$ 190 milhões anuais vendendo ou extinguindo órgãos. Se a Justiça andar, pode evitar o triunfo da catástrofe e recuperar mais de R$ 820 milhões roubados à CEEE no governo Pedro Simon, em 1988, até hoje em "segredo de Justiça" num processo na 2ª Vara da Fazenda, sem sentença, à espera de prescrição.
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