Uma das potencialidades da criação artística é apontar fenômenos que estão na nossa cara, mas que percebemos melhor por meio de um olhar diferenciado. É o que ocorre no espetáculo Espalhem Minhas Cinzas na Eurodisney, da Cia. Stravaganza, com texto de Rodrigo García, em cartaz até 28 de abril no Instituto Ling, em Porto Alegre.
A companhia gaúcha e o dramaturgo argentino radicado na Espanha fazem uma crítica ao mundo sob o capitalismo: o consumismo desenfreado, o empobrecimento da linguagem e o embrutecimento da alma. O espetáculo é por vezes soturno, mas em alguns momentos engraçado, provocando aquele sorriso amarelo que nos lembra de nossa miséria. Constatando o mal-estar na contemporaneidade, o trabalho questiona se uma árvore não estaria hoje melhor do que nós, humanos, que buscamos desesperadamente algum sentido para a vida.
Há uma reflexão sobre a capacidade da arte constatar e fazer alguma coisa para mudar o estado disso que chamamos muito genericamente de capitalismo. De certa forma, a cultura vive esse paradoxo: critica o capitalismo ao mesmo tempo em que vive nele. Há quem deseje a morte desse sistema (em prol de algo como o socialismo ou o anarquismo) e há quem prefira consertar o sistema existente, propugnando uma espécie de capitalismo com coração, baseado na ideia do Estado de Bem-Estar Social.
Alguns anos atrás, um amigo com residência no litoral gaúcho me falou que costumava ver uns caras pegando comida do lixo dele. Não eram pessoas em situação de rua, mas revoltados que, segundo consta, não queriam se sujeitar ao capitalismo. Até hoje me pergunto se essa história é verdadeira ou não, mas de qualquer forma ilustra o paradoxo do parágrafo acima. Na verdade, esses caras estavam participando do sistema, mas de forma periférica.
Metaforicamente, os artistas se encontram em situação similar nesses tempos de vacas magras para o financiamento à cultura, disputando os escassos patrocínios e incentivos que restam. Como estão todos no mesmo barco, o desafio é encontrar soluções criativas para, quem sabe, fazer o capitalismo trabalhar a seu favor.