Dr. Stockmann é médico da Estação Balneária que movimenta a economia de uma pequena cidade na costa meridional da Noruega. Tudo vai bem até que ele descobre uma contaminação na água, notícia que implica alto custo financeiro e político para os poderosos do local – incluindo o irmão do médico, que é prefeito da cidade. Devido a um obscuro jogo de interesses, a palavra de Dr. Stockmann é colocada em dúvida a ponto de ele ser vilipendiado pela população.
Esse é o resumo de Um inimigo do povo, uma das grandes peças de Ibsen, estreada em Oslo em 1883. Em cena, a contaminação da água é uma metáfora da corrupção das instituições de uma cidade e dos problemas morais que acometem sua sociedade. Contra a unanimidade hipócrita, Stockmann pontifica ao final: "O homem mais poderoso que há no mundo é o que está mais só" (cito pela edição da L&PM).
A água sempre rendeu ótimas metáforas porque é um recurso de primeira necessidade. Como se sabe, as metáforas não costumam ser evidentes: exigem bons leitores para serem constatadas. Se a Porto Alegre de hoje fosse cenário de uma peça de teatro, as suspeitas sobre a cor e o gosto da nossa água encanada seriam uma metáfora de quê? Proponho um exercício de imaginação, não uma teoria da conspiração.
Penso nos tapumes que cobrem boa parte da vista do Guaíba na altura da Usina do Gasômetro, ali no Centro. Um dia haverá uma nova orla por lá, mas, como se sabe, há um impasse no projeto, que é contestado por parte da população. Enquanto isso, os porto-alegrenses não apenas ficam alijados do pôr do sol, mas também têm dificultado o acesso a um de seus lugares mais queridos de lazer e cultura – o Gasômetro e seu entorno.
Uma pesquisa com 1,2 mil pessoas divulgada pelo Observatório da Cultura de Porto Alegre e pela prefeitura em 2015 revelou que a Usina é o espaço preferido para assistir a exposições de artes e o terceiro lugar favorito para assistir a shows de música, perdendo apenas para a Redenção e o Auditório Araújo Vianna. É também um dos espaços públicos mais frequentados da cidade: 85% já estiveram lá e 70,5% foram nos 12 meses anteriores.
Estive recentemente em dois espetáculos na Usina, onde há um projeto de residência com coletivos de artes cênicas. As apresentações foram ótimas, mas a imagem da Usina está um tanto triste: pouca gente passa por lá, e o acesso está difícil, pois os tapumes fecharam o principal estacionamento. Não é de hoje que o espaço cultural e a orla precisam ser repensados, mas a conjunção de fatores nos faz refletir sobre as fontes – metafóricas e reais – nas quais pretendemos beber.