Dói um pouco na minha alma toda vez que ouço Herbert von Karajan. Mas não é exatamente uma dor de emoção. É mais uma mistura de angústia e prazer culpado. É o que sinto quando fruo, por exemplo, a bela interpretação do Canon, de Pachelbel, regida pelo célebre (famigerado?) maestro austríaco. Consigo até entender por que essa música é tão requisitada em casamentos. É realmente linda.
Um pouco porque comprei e um pouco porque ganhei, tenho vários CDs de Karajan. Um disco duplo com excertos de suas melhores gravações empacotadas para consumo imediato, uma caixa com cinco discos contendo Concertos para violino solados por Ann-Sophie Mutter, um estojo triplo com a ópera Tristão e Isolda, de Wagner. Fora a surpreendente informação de que ainda ouço CDs, o que quero compartilhar é esse estranhamento que me persegue e suponho que persiga outros também. Por que, afinal, Karajan era – como colocar isso de forma branda? – um simpatizante do nazismo. Mas também foi um grande maestro, embora isso seja contestado pelo crítico Norman Lebrecht, que deplora sua obra e sua pessoa.
Para Lebrecht, Karajan era o que havia de mais autoritário e pernicioso na música, além de um sujeito avesso às novidades da música moderna que fugissem dos repetidos programas clássico e romântico. Só que ele vendia muitos discos: a certa altura, foi responsável por um terço das receitas do selo Deutsche Grammophon, segundo Lebrecht. Por isso, há tantos CDs seus à disposição, muitas vezes por preços bem camaradas. É uma tentação, mas a era da música por assinatura nos acena com ótimas alternativas a ele.
Não é fácil essa negociação entre vida e obra. Filósofos judeus como Lévinas e Derrida tiveram que se entender com o legado do também nazista Heidegger, uma forte influência no campo da ontologia. Mas é possível perdoar quando o assunto é, digamos assim, tão grave? Essa foi uma das reflexões do pensador Vladimir Jankélévitch, que merece ser mais conhecido no Brasil.
Penso que essa fissura na biografia de Karajan e seus colegas de passado maculado estará sempre ali. Entendo quem prefira não ouvi-lo, ainda mais regendo Wagner, que era um notório antissemita. Meu problema com Wagner é outro: acho chatíssimo. Mas tergiverso. Sei que minha solução não agradará a muitos. Nem chega a ser realmente uma solução, é mais uma palavra de resignação: conviva com a dor ou pare de ouvir. Em uma questão tão íntima – como cada um lida com o trauma –, não pode haver um imperativo universal.