– Mas vem cá, Licinha... E essa dos hôme de preto? É verdade o que tão falando? Tamo perigando perder as terra?
Alice aproveitou o espichado gole de chimarrão do Seu Juvêncio para pensar numa resposta.
– Não sei, pai. Ninguém tá seguro, porque agora o STF derrubou o tal marco temporal. Então... se alguma ONG, algum antropólogo aparece com um laudo dizendo que isso aqui era terra de índio, a coisa vai complicar...
– Eu não sei de nada, só sei que tamo aqui desde o tempo do teu bisavô... Tudo certo, tudo na lei.
– Aí é que tá, pai. A Constituição é de 88, e todo mundo, até o STF, seguia uma regra... Que índio só podia reclamar terra que eles estavam ocupando em 88... Agora, o tribunal derrubou isso. Então, ninguém sabe, mais. Daqui a pouco alguém escava e acha uma coisa enterrada aqui, e é prova pra demarcar como terra indígena.
– Mas e aí, como é que a gente faz, depois de tudo que a gente construiu aqui?
– Sei lá, pai. Ficou desse jeito, ninguém sabe direito o que vai acontecer. Certeza, mesmo, é que nada é certo. Agora, qualquer hora é hora pra fazerem uma demarcação. E aí só resta pra família entregar tudo, no máximo discutir valor de indenização. Só que, aí, é outra luta... Discutir indenização na justiça é demorado, e governo... Sabe como é que é, né? Pagamento pode virar precatório...
– Mas é uma pôca vergonha!
A mãe de Licinha estava estendendo roupa ali perto, só orelhando. Ergueu a voz.
– Só vendendo, Juvêncio. Pelo menos não deixamos um pepino desses de herança.
– Mas quem é que vai querer comprar, Lurdinha? Todo mundo querendo vender, os preços vão baixar. Nem compensa.
Licinha deu razão ao pai. Lembrou que o mesmo STF, semanas atrás, tomou outra decisão ruim para o campo, determinando que uma propriedade, mesmo sem ser produtiva, pode ser desapropriada se não cumprir sua “função social”.
– Mas como, Licinha? Que diacho é isso de dizer que uma terra que produz não tem função social? Mas onde é que nós vamo parar desse jeito?
– Pois é, pai. Ninguém sabe como isso vai ficar, também. Olha, eu acho que o senhor devia escutar a mãe: botar pra vender, e pegar o dinheiro que conseguir pegar... Eu não aconselho ficar aqui e investir na fazenda. É um tiro no escuro...
Para animar o pai, a moça contou que a Frente Parlamentar da Agropecuária está furiosa com o STF e pretende forçar o Congresso a fazer uma lei, ou mesmo uma emenda à Constituição, para neutralizar as decisões do STF.
– Essa Frente do Agro vai obstruir votações no Congresso até que os deputados e senadores votem, pai.
Juvêncio botou a cuia no suporte.
– Tu acredita nisso, minha filha?
– Olha, pai, parece que existem uns 340 deputados do agro...
Maioria folgada pra aprovar até emenda constitucional.
– Ó Licinha, tu é adevogada, mas eu sou velho. Primeiro que STF e
Lula têm o Congresso aqui, ó... na palma da mão. O governo libera dinheiro, sabe como é, e na hora da onça beber água tudo se acomoda. Inda que passe a tal lei, os hôme de preto vão dizer que é inconstitucional. E ponto final, são eles que mandam.
Dona Lurdinha deu razão ao marido. Licinha levantou e pegou a bolsa.
– Só uma coisa, pai. Nem todo mundo lá em Brasília é frouxo, nem todo mundo tá à venda. Acho que isso não vai ficar assim.