– São Gonçalo é uma fraude – disse eu, de bate pronto.
– Não é, não – rebateu Ana Beatriz, também de primeira.
Eu estava palestrando na fazenda Colubandê, em São Gonçalo. Você provavelmente nunca ouviu falar da fazenda Colubandê – talvez devesse. Mas já deve ter ouvido falar em São Gonçalo, na Baixada Fluminense, a 30 quilômetros e a uma eternidade do centro do Rio. Ana Beatriz é uma menina de sete anos, nascida em São Gonçalo. Ela ama sua cidade, embora ela seja turbulenta, desigual, abafada, poluída, sem árvores e violenta.
Mas não foi em função dos problemas gritantemente visíveis (já à primeira vista, e à ultima também) que abri a boca para chamar a cidade de “fraude”. A frase se baseia em fatos reais: não existe um santo chamado Gonçalo. “São” Gonçalo foi – e segue sendo – só beato. Gonçalo de Amarante nasceu em Portugal em 1187. Jovem, partiu a pé até Jerusalém. Ficou lá 14 anos, voltou, virou eremita, foi morar numa gruta e nela morreu em 1262. Foi beatificado em 1561. A Igreja nunca lhe concedeu o status de “São”.
Quem batizou o município foi seu primeiro proprietário, coincidentemente chamado... Gonçalo. Gonçalo Gonçalves, português, tomou parte na guerra contra os franceses que haviam se instalado na baía de Guanabara em 1555. Após batalhas cruentas, que os lusos só venceram graças ao apoio dos temiminós de São Gonçalo, os franceses foram expulsos e seus aliados tamoios dizimados. Os tamoios eram liderados por Cunhambebe – e não sobrou um único. Os temiminós eram comandados por Arariboia, mas o fato de terem se aliado aos portugueses não os impediu de também serem exterminados. Não só devido às doenças, mas por terem sido escravizados por aqueles ao lado dos quais haviam lutado.
O que começou errado, foi piorando. Fundada em 1660, a fazenda Colubandê virou polo da exploração do açúcar na região – e o pó branco levou à escravização não só dos indígenas como dos africanos. O engenho era de cristãos-novos. Denunciados ao Santo Ofício, foram presos, torturados e mortos em Portugal. Tombada pelo Iphan em 1940, a fazenda foi saqueada nos últimos anos: roubaram até o sino de quatro toneladas. Hoje, São Gonçalo tem 1 milhão e 100 mil habitantes. O índice de IDH é vil e a cidade vive assolada pela milícia e pelos traficantes. Quando a polícia chega lá, é para matar – na semana retrasada, executou nove “suspeitos” e jogou os corpos no mangue.
Passei cinco dias naquela paisagem de imperfeições, sob nuvens desfiguradas. Antes de chegar, já havia concluído que São Gonçalo não tem solução – só começando de novo. Mas então não apenas Ana Beatriz, do alto da sabedoria de seus sete anos, como uma série de alunos da rede pública para os quais palestrei, me fizeram crer que se o Brasil nunca foi santo, talvez também não seja só uma fraude.