A cidade do Salvador foi fundada em março de 1549 (mais de 220 antes de Porto Alegre, portanto) para ser “como coração no meio do corpo”. Criada como primeira capital do Brasil, era cidade planejada e as “traças e amostras” – ou seja, o plano diretor e as plantas baixas – foram trazidas de Portugal, bem como o arquiteto responsável pelas obras, Luís Dias. A capital deveria emular Lisboa, com uma Cidade Alta (onde ficariam as sedes do poder: o palácio do governo, a igreja da Sé e a Câmara e a cadeia), sobrepondo-se à Cidade Baixa (lugar do porto e da alfândega, onde labutaria o povo). A cidade foi construída por seis empreiteiros, mas as licitações foram fraudadas e as obras, superfaturadas, atrasaram-se em vários anos. Inaugurada às pressas, a muralha ruiu dois meses depois de pronta.
Apesar do início inglório, Salvador logo virou uma cidade magnética, um polo entre dois mundos, a inequívoca capital do Atlântico negro, capaz de transformar oceano em rio – um rio de lágrimas, por certo, mas também uma torrente de vida e sangue, pois, qual vaso comunicante entre dois continentes, seria responsável pela transfusão de culturas da Costa da Mina para as costas do Brasil. E ainda mais do que uma cidade luso-africana, com sotaque brasileiro, tornou-se cidade majoritariamente negra. Era a urbe que “falavazava desvairadas línguas”, em meio à qual a realeza africana no exílio e a “canalha” d’além-mar misturavam-se, quase indistintas, no formigueiro humano que coalhava a Cidade Baixa, o mais das vezes submissa e subserviente à Cidade Alta, mas ainda assim subversiva e insurgente, como na Revolta dos Malês (em 1835) e na Sabinada (1838).
Reconhecida pelo odor do azeite-de-dendê misturado ao onipresente cheiro do mijo, era a “triste Bahia, tão dessemelhante, de tantos negócios e tantos negociantes”, tal como cantou o Boca do Inferno, o imortal Gregório de Matos, já nos idos do século 17. Era também a cidade “erguida em nome do Salvador, mas onde o diabo arregimenta as almas”. A cidade de Caetano e Caymmi e Castro Alves. A cidade de Jorge Amado, Caribé e Verger. De Gil, João Ubaldo e João Gilberto. A cidade de Cipriano Barata, do doutor Sabino e de Marighella.
Mas, acima de tudo, é a cidade de todos os santos, de todos os deuses, dos terreiros e dos tambores, dos orixás, do axé, do acarajé, do Olodum, dos Filhos de Gandhi, do Ilê Ayê, da Igreja do Bonfim, de Mãe Senhora, de Mãe Menininha. A cidade de todos os batuques, todas as macumbas, todos os feitiços, todos os sortilégios. Quando você estiver lendo estas mal traçadas, neste 26 de novembro de 2005, ops, de 2021, estarei desembarcando na Bahia. Minha primeira pergunta será: “Onde fica o Estádio dos Aflitos?”. Não me pergunte como, mas parece que ele saiu do Recife e foi parar em Salvador.