O telefone tocou e, aos prantos, ela disse:
– Ele morreu sozinho, abandonado e esquecido.
Meu coração gelou. Em tempos de pandemia, uma ligação dessas...
– Ele quem? – perguntei, os olhos já revirando.
– O Herman.
– Que Herman, pô?
– O Melville. Herman Melville.
Pensei em esgoelar a guria. Ela tinha acabado de ler Moby Dick, um dos livros mais marcantes da literatura ocidental, e, impressionada com o vigor da obra, fora pesquisar a biografia do magistral “Herman”. Fazia uns meses, havíamos visitado a casa dele em Pittsfield, Massachusetts, visto a mesa e a caneta com a qual ele redigira aquele épico e escutado as desgraças de sua vida e a forma como o mundo ignorou sua obra-prima. Mas Lízia estava um tanto alheia, pois pouco antes, o maldito GPS nos enviara para Amherst (em New Hampshire) e não para Amherst (em Massachusetts), onde uma das poetas favoritas dela, Emily Dickinson, vivera em poética clausura e a gente acabou não visitando a casa dela. Seguindo estrada fora, fomos à próxima parada: a casa de Melville. Só que ela ainda não tinha lido Moby Dick.
Relembro isso pois Lízia Bueno, minha filha mais nova, está de aniversário. E quero tecer um cântico a ela que sempre foi linda, etérea, transparente, flamante e flanante, embora também inquieta, incisiva e por vezes implacável – ainda mais com o Brasil e o mundo do jeito que andam. Mas exulto em saber que ela já devorou a baleia branca e escutou o grasnar do negro corvo, que deu cores às vogais e regulou o movimento das consoantes; que madame Bovary é ela, mas Lady Macbeth não. Que já esteve com Robinson solitária na ilha e deu a volta ao dia em 80 mundos. Que é Simone, que é Anais e que não tem medo de Virginia Woolf.
Sim, Lízia palmilha ruas, esquinas, praias e montanhas carregando dentro de si já bem uns 500 livros – da Divina Comédia a Eneida; da Odisseia a On the Road, de Emerson aos russos. Aliás, tudo começou com um deles: Nabokov, até hoje seu favorito. Aos 12 anos, ela leu Lolita; aos 14, entrou num antiquário em Londres e perguntou se tinham “a edição original”. Tinham, por 4 mil libras. Então, entre casual e séria, ela sentenciou: “De momento, não disponho dessa quantia; volto outro dia”.
Vejo-a agora, aos três anos, metida numa camiseta de sereia, lançando cantos e encantos e aos quatro fantasiada de havaiana, o que me lembra que não estava junto quando ela mergulhou no Havaí, mas sim quando mergulhamos em Walden, resgatamos bruxas em Salem, rezamos para Kerouac em Lowell e para Oscar Wilde no Père-Lachaise, depois de ver Shakespeare no Globe. Somos pai e filha, mas também irmãos em letras, nos traços e no regaço, a dar colo um para o outro. Espero que este seja só o primeiro quarto de século das luzes de Lízia, um farol a luzir nos mares tempestuosos por onde singra a baleia branca.