Quando me pediram este texto sobre o Dia das Crianças, enquanto decidia o que escrever, desenhou-se um roteiro de pânico, que evoluiu para descoberta e, por fim, besuntou-se docemente com o bálsamo da tranquilidade. Dei-me conta que minhas lembranças foram editadas. Eu mesmo as editei. Aos quase 55 anos, o esquecimento começa a te espreitar para o bote final, lá adiante. Eis o susto do pânico. Restam aquelas imagens inesquecíveis, que tomam conta de você eternamente, como se elas tivessem acontecido agora, por motivos que só os caminhos da mente, com doses salvadoras de psicanálise, podem explicar. É a revelação da descoberta. Deixo o motivo do terceiro e último sentimento que me assaltou antes de preencher a tela branca do computador para o final. Vivemos na era dos seriados e streamings, então não custa criar certa tensão e solucioná-la no mesmo capítulo.
Na parte da descoberta que fiz ao exercitar sinapses cansadas sobre minha infância, percebi cenas de uma Porto Alegre que ainda não existia. O Parcão, por exemplo. Ainda era um imenso campão com mudas de árvore nos anos 1970, antes de se tornar o pulmão verde do Moinhos de Vento, mas foi ali que cometi um crime ambiental. Aquela graminha perfeita era convidativa para uma pelada básica. Usamos dois tenros projetos de árvore perfeitamente alinhados de goleirinha. Claro que a bola bateu na trave e liquidou com uma sombra para décadas. Um guarda nos xingou ao ouvir aquele "TLÉC" e perceber o que tinha acontecido. Só que ele estava distante. Quando ameaçou correr em nossa direção, meus amigos e eu já tínhamos deitado o cabelo. Fuga covarde, tudo bem, mas deliciosa. Outra imagem de guri, talvez não por acaso vinculada a futebol foi outra pelada, nas obras da Segunda Perimetral, ali na extensão da Goethe.
Eu morava bem na frente. Nos finais de semana, a obra parava. Tínhamos uma quase rua só para nós. Que maravilha! Variávamos entre taco - "licença para dois!" - e, claro, um joguinho raiz. Nunca esqueci daquele domingo de 1978. Argentina e Holanda decidiam a Copa. Ouvimos um grito de gol ao longe. Fui correndo conferir. Como, sem celular, sem internet, sem TV por perto? Atravessei a Mariante, toquei o interfone do nosso prédio e perguntei para o meu pai.
— Gol nosso, da Argentina, da América do Sul. Kempes, o cabeludo aquele. Não te falei? — ele disse, com marra suficiente para o filho dele pensar "pô, meu pai é f...."
Anos depois, compreendi que seria melhor um título para a Laranja Mecânica, pelo bem do futebol e da liberdade, em meio à cruel ditadura militar hermana, mas ali meu pai pensava na proximidade com os castelhanos. Somos um pouco Uruguai e Argentina. E quando quebrei o nariz do meu professor de judô? Não com um golpe de talento, mas de estabanado. Eu estava no chão, numa aula de imobilização. O professor bigodudo, voz de trovão - lembro do nome: Gabriel - abaixou-se para dar dicas enquanto nos mexíamos no solo. Soltei uma pernada que lhe acertou o nariz. Ele não acusou o golpe na hora para não assustar a gurizada, que nem se deu conta na hora. Fiquei arrasado quando meus amigos disseram, dias depois, em tom acusatório, quando ficamos sem aula:
— Foste tu, Diogo. Quebraste o nariz do professor.
E tem a imagem que chega a te resgatar sensações, mesmo quase meio século depois. Sinto o calor do colo do meu pai, eu muito pequeno, ele me carregando no calcadão e tentando me abrigar de uma chuva de verão em Tramandaí como se fosse agora, messe instante. Do sorriso e do som da risada. Dos cumprimentos aos amigos que ia avistando no caminho. Recordo até de fingir que dormia, para ganhar algum balancinho ou carinho extra. Eis o momento do terceiro e último sentimento que me assaltou quando me pediram para escrever sobre minha infância, depois do susto do esquecimento à espreita e da revelação das cenas eternas. Vivi para chegar até aqui, a tempo de fazer parte das imagens de infância do meu filho Pedro. E fiquei mais calmo para o resto da minha existência de sei lá quanto tempo mais. Entre erros e acertos, já valeu a pena.