Se você ainda não viu, aí vai uma dica em tempos de bandeira preta e a responsabilidade de ficar o maior tempo possível em casa para quem puder. O documentário Pelé, disponível desde esta semana no Netflix, é obrigatório por ajudar a compreender a trajetória do brasileiro mais popular de todos os tempos. Produzido pela Pitch, empresária árabe que comercializa os amistosos da Seleção Brasileira, o filme não tem nada de revolucionário do ponto de vista estético. É construído a partir de uma entrevista exclusiva com o próprio Pelé, mas que vai abrindo e fechando apostos com percepções de nomes conhecidos em várias áreas, da política à cultura, de Fernando Henrique Cardoso a Gilberto Gil.
É um filme a favor de Pelé, que fique bem entendido. Você não sai dele contestando sua realeza, mas a obra tem o mérito de abordar um tema controverso de sua carreira, e o faz com boa carga crítica: o fato de Pelé nunca ter sido um ativista negro ou um homem de oposição firme contra o regime militar.
O resultado é um ídolo humanizado e frágil, que chora quando lembra de um tempo que não volta mais. Fragilidade não apenas pelas rugas e a cadeira de rodas - ele só caminha com andador. O craque eterno confessa que dúvidas, fraquezas e nervosismo o acompanharam mesmo no auge. Dá exemplos, com fatos inéditos ocorridos à caminho de grandes jogos. Não darei spoiler. Aos 80 anos, Pelé não é mais aquela fortaleza física da propaganda do Vitasay. Talvez por isso tenha aberto o jogo.
Pelé era um astro incontestável e planetário quando o AI-5 foi decretado, proibindo tudo e legitimando as barbaridades dos porões com teses lunáticas acerca da sovietização do Brasil. Os campeões de 1970 foram recebidos pelo presidente Médici após a conquista no México. Antes, Pelé se encontrara com a junta militar, que adorava ser fotografada com ele.
Como Pelé cogitou não mais jogar Copas após o fiasco de 1966, os militares fizeram chegar o recado de que era melhor ele ir ao México. Todo mundo sabia que o regime planejava fazer do tri um anestésico para o fim da democracia e as perseguições políticas. Delfim Netto, ministro da Fazenda, dá o seu relato e confirma que, sim, o governo estava interessadíssmo em uma Seleção campeã.
O documentário mostra imagens desconfortáveis de Pelé com os generais e o questiona sobre isso, mas abre vírgulas para um exame de contexto que é essencial. Compara-se, claro, Pelé e Muhammad Ali. Cassius Clay era engajado. Ironizava a supremacia branca em entrevistas irônicas e inteligentes. Colocava o dedo na moleira da sociedade americana já nas décadas de 1960 e 1070. O gênio do boxe recusou-se a lutar no Vietnã.
Atitudes corajosas, sim, mas pense no menino pobre brasileiro que chegou ao estrelato sem a devida compreensão do mundo ao redor, imaginando que sua vida seria só jogar bola para livrar a família da pobreza. Muhammad Ali vivia sob um regime democrático. Sabia que se afrontasse o alistamento militar, seus pais, filhos e amigos não corriam risco de prisão, tortura ou desaparecimento. No Brasil, reinava o medo na década de 1970. Não havia certeza de nada. Duvido que Pelé se imaginasse protegido pela fama. A coragem é louvável, mas o medo é humano.
Então Pelé adotou uma postura de planta no BBB. Não combateu, é verdade, mas também nunca se alinhou ao regime. Brasileiro algum o vê como filhote da ditadura ou mesmo relaciona o tri no México como peça do regime. A história mostrou que o país se orgulhou do timaço, que foi lá fazer o seu trabalho para nós, enterrando de vez o Complexo de Vira-latas, a despeito do regime tentar pateticamente pegar carona.
No que diz respeito ao ativismo racial, há certo preconceito estrutural quando se tenta relativizar uma realidade: o brasileiro mais conhecido e amado do mundo é um negro. Por que só os negros têm obrigação de se posicionar? E os outros? Rivellino, Zagallo, Gérson: eram astros também. Nunca se cobrou nada deles, talvez por serem brancos. Inconscientemente, reduzir Pelé a mero jogador de bola é um jeito de desconstruí-lo.
Ele sempre foi um atleta leal e correto no futebol, com posturas fraternas, sem arrogância ou ostentação, algo bem comum hoje em dia. Sempre teve engajamento em causas sociais e refutou discursos sectários de ódio. Pode não ter sido ativista antirracial, mas nunca deixou de valorizar a causa. Cometeu erros em sua vida pessoal, mas o que ele fez pelo Brasil é maior e não tem tamanho. O Pelé humano é complexo e falível, mas também é muito mais interessante do que o maniqueísmo atribuído ao Rei. É gente como a gente.