Tremenda injustiça Neymar ter ficado de fora da listra tríplice da qual a Fifa pinçará o melhor do mundo. Messi e Cristiano Ronaldo estão dentro mais pelo conjunto da obra do que pelo recorte da temporada. A premiação é um grande evento de marketing e audiência planetária, e não ter gênios concorrendo deslustra o espetáculo midiático.
Lewandowski, esse sim, mesmo sem uma perna do talento de Messi, CR7 ou Neymar no sentido mais amplo desta arte chamada futebol, merece ser o eleito, pela letalidade como artilheiro. O Bayern deve muito de seu oitavo título europeu, cujo alicerce é a parte coletiva, a este polonês que faz gols com a naturalidade do ato de respirar. O fato é que Neymar terminará o ano de 2020 como um vencedor de um prêmio mil vezes maior.
Neymar está a caminho de ser um ídolo completo, no Brasil e no mundo, se mantiver a carreira no trilho em que ele mesmo a colocou. Um ídolo não apenas pelo talento, muitas vezes inato, mas também pela postura diante de questões sociais graves.
Desde que liderou o protesto contra o racismo sofrido pelo auxiliar do Istambul, esta semana, conduzindo o PSG a abandonar o gramado porque o quarto árbitro, acusado do crime, não iria sair de campo, ele mudou de patamar moral. Foi um gesto grandioso e difícil.
Pode não parecer simples agora, após o fato consumado, mas era jogo de Liga dos Campeões. E se a Fifa, conservadora por natureza, endurece e pune o PSG, na fila eterna por um título europeu? Em questão de horas Neymar seria o vilão.
É Neymar quem vai no árbitro e avisa da decisão irrevogável do PSG, com a firmeza de um Churchill ao não aceitar acordo com Hitler na Segunda Guerra Mundial e lutar até o fim contra o nazismo, criando o amálgama para a Grande Aliança que salvou o mundo das trevas. Nunca houve um grito de "Basta!" tão emblemático.
O preconceito seguirá no futebol por ser uma praga social, mas eles abriram a porta para o fim do racismo escancarado aos menos durante os jogos, para além das campanhas cosméticas e dos slogans bacanas da Fifa. Neymar, Mbappé e o atacante Demba Ba, do Istambul, que confrontou o acusado com a força dos argumentos, sem palavrões ou ofensas, mostraram o caminho. Talvez não tenha sido coincidência o que aconteceu no dia seguinte.
Amadurecimento
Neymar exibiu a maior atuação da sua carreira quando o jogo interrompido aconteceu. Tudo bem, pode ser exagero. Mas é por aí. Na vitória por 5 a 1, o craque brasileiro assinou golaços, alguns tipo obra de arte mesmo. Arrasou em tudo: gols, passes, dribles, solidariedade tática, lançamentos. Não simulou nem prova do Enem, mesmo com muitas chegadas duras dos turcos.
Parecia feliz por ter feito o certo. Neymar já vinha experimentando uma espécie de despertar para a maturidade plena desde o fracasso de sua forçação de barra para voltar ao Barcelona. Os franceses o vaiaram por alguns meses. Neymar só tinha um caminho: a resiliência. Tinha de aceitar as críticas — justas, em boa parte — e conquistar o perdão com gols e atitudes de um verdadeiro líder. Foi o que ele fez.
Consciência
O Marcelo Carvalho, criador do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol, contou que, em seus grupos de debate, surgiram duas hipóteses interessantes que teria funcionado como centelhas para este novo Neymar. É como se estivesse mais consciente das suas responsabilidades como exemplo para quem é pobre e, diferentemente dele, não nasceu com o talento para ganhar rios de dinheiro através de futebol e se livrar do dia a dia do preconceito.
Este ano, ele mesmo denunciou ter sido foi alvo de injúria. Foi no clássico contra Olympique, de Marselha. Após o abandono contra o Istambul, Neymar disse que talvez tenha errado em não se retirar do gramado já aquela vez. A outra hipótese é a amizade dele com Lewis Hamilton, especialmente, e LeBron James.
Os gênios, do automobilismo e do basquete, se posicionaram de maneira corajosa e incisiva, também assumindo risco de retaliação (Lewis até foi: levou algumas punições estranhas na pista, até chegar ao hepta na F-1). LeBron arrastou a NBA. Gritou forte, sem pedir licença. Os jogadores vieram com ele. E a opinião pública americana. Foi uma onda. Nada restou para a liga a não ser abraçar a causa, levando patrocinadores junto. Um marco histórico.
Só que Lewis e LeBron nunca cobraram nada de Neymar. Disseram o que dizem sempre: a cobrança de posicionamento tem de ser para todos, e não só para os negros, vítimas do processo. Cada um a seu tempo. A cronologia dos fatos indica que Neymar foi despertando, como o sol ao amanhecer.
Em sua conta no Instagram, seus 26 milhões de seguidores já podem contemplar o punho cerrado dos Panteras Negras, como o da foto. Tomara que o tempo consolide esse processo de amadurecimento. Era o que faltava para os olhares sobre Neymar serem mais positivos do que negativos, deixando de lado aquela imagem ostentação que vez por outro parecia mais forte do que tudo.
Esse novo Neymar, anotem aí, será consagrado no ano que vem, quando a Fifa, enfim, o escolher como o melhor do mundo. Tite deve estar sorrindo com seu camisa 10. Era tudo o que ele queria, do ponto de vista tático e comportamental. A Copa do Catar é logo ali.