A morte de Maradona, ao fim e ao cabo, era inevitável. Desde a aposentadoria, ele vem morrendo aos poucos, numa lenta e triste agonia. O mito do El Diéz soterrou Diego Armando, este apenas um homem com uma vida a viver: respirar, se apaixonar, cuidar dos filhos, livrar-se da dependência química, pagar as contas, trabalho.
Como repetir a perfeição, enquanto pai, marido e cidadão, que exibia com a bola no pé? Impossível. Não deve ter sido fácil carregar o peso de ser Maradona. Pelé resolveu esse problema se repartindo em duas entidades: Édson e Pelé. Pode parecer meio esquizofrênico, mas funcionou com Edson Arantes Pelé do Nascimento. Ele está aí, lúcido, aos 80 anos, um mês e cinco dias de idade.
De todas as capas e textos sobre a morte de Maradona, duas se conectam mesmo com um oceano de distância e explicam o que veremos – já estamos, na verdade – a partir de agora. O jornal francês L'Equipe deu de manchete, em uma página totalmente preenchida pelo craque jovem, com a camisa da Argentina:
— Deus está morto.
Li a manchete, forte e impactante, e juntei com um artigo do jornalista Hernán Claus, escrito em uma das 60 páginas que o Diário Ole destinou ao dia seguinte da tragédia anunciada. Claus foi setorista do Boca Juniors durante muito tempo. Agora, ele cobre a Seleção da Argentina. Segundo Claus, o país perdeu o seu maior símbolo nacional. Mais que Perón, Evita, Gardel, Mafalda, Borges.
Mais do que Che Guevara, a quem Maradona idolatrava ao ponto de se deixar fotografar fumando charuto e preenchendo o braço direito, perto do ombro, com uma tatuagem da imagem icônica do líder guerrilheiro cubano olhando o horizonte, de boina. Mais do que o cardeal Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco.
Maradona é um símbolo maior até do que o general San Martín, o libertador que expulsou os espanhóis. Exagero? Claus, um dos melhores textos da crônica esportiva argentina, cuja tradição de escrita é, a um só tempo, densa e pulsante, define o que é um símbolo nacional. Em um país sempre dividido em tudo, de muita "grita", quem alcança a façanha de unir os argentinos merece ser chamado de símbolo nacional.
Maradona uniu o país na alegria e na dor. Não só com o título mundial, em 1986, o último na sala de troféus. Mas por ter afundando a frota britânica, com a mão e com os pés, vingando as mortes na Guerra das Malvinas. Ou quando eliminou o Brasil na Copa de 1990 com aquela passe mágico para Caniggia. Entre crises econômicas e pobreza crescente, os argentinos foram muito felizes com Maradona.
Agora, na morte, as vírgulas e restrições ao seu comportamento ficaram de lado. Boca e River choraram juntos, e isso já diz tudo. La pelota no se mancha. Maradona pode não ser maior do que Pelé, mas ganhou do genenal San Martín e do político e economista Manuel Belgrano, criador da bandeira da Argentina.
O que fazer, portanto, com um Deus morto que é o maior símbolo nacional de todos os tempos da Argentina? Eis aí uma atividade em que os argentinos são craques: o culto à morte. Tomás Eloy Martinez, jornalista e escritor, abordou essa peculiaridade de seus compatriotas em alguns livros. O principal deles, um romance chamado Santa Evita, sinaliza o que acontecerá com Maradona.
Quando Eva Perón morreu, em 1952, seu marido, o general Juan Domingo Perón, ordenou que o corpo da protetora dos pobres fosse embalsamado e exposto à nação numa redoma de vidro. Quando ele é deposto do cargo de presidente, o cadáver da primeira-dama vira um fardo. Os militares, com medo da idolatria popular por Evita, o sequestram. Morta em um caixão, ela vaga semanas pelas ruas de Buenos Aires, cada vez mais misteriosamente jovem e bonita, pelos mais secretos esconderijos. Paro por aqui, sem spoiler.
Alguém questionará se Maradona está mesmo morto. Como fazem com Elvis Presley e Jim Morrison até hoje. Mas e o cadáver, que todo mundo viu na Casa Rosada? Pode ter sido um boneco de cêra, ora essa. Uma farsa, para o gênio enfim viver em paz, anônimo em algum pampa argentino. Façanhas inéditas, com testemunhas oculares, serão descobertas.
Milagres a ele serão atribuídos. Haverá peregrinação ao túmulo, como ao de Evita, no cemitério da Recoleta, que não perde em nada para o de Pere-Lachaise, em Paris, pela beleza e ostentação dos túmulos. Ponto turístico em Buenos Aires.
Morre o ser humano, nasce o mito. E, por ser um mito argentino, nascido em um povo que beatifica suas paixões e delas faz religião, a morte de Maradona é o pontapé inicial do maior da história do futebol. Não do maior e melhor jogador que já se viu.
Esse é Pelé, indiscutível e eterno.
Mas do maior mito.