Essa ideia de transmitir na íntegra jogos antigos com narração atualizada, que nasceu na emergência das TVs a cabo para manter a programação em tempos de coronavírus, acabou se tornando um produto extraordinário. Rezo para que a mantenham, vez por outra, quando o futebol ao vivo voltar. Além de ser um prazer rever grandes craques, dá aos filhos a chance de saber sobre quem os pais falavam esse tempo todo e eles não davam muita atenção.
O comentarista, à luz do distanciamento histórico, vai soltando informações para entender não só a partida, mas o contexto: o que representava o jogo naquele exato instante, como cada jogador chegava em termos de cobrança da torcida, onde cada estrela atuava, o olhar dos adversários àquela altura e assim por diante. E nos dá, também, a chance do copidesque. Houve um tempo, nas redações dos jornais impressos, que a figura do copidesque era essencial.
Um texto podia estar maravilhoso, mas havia os limites da página. Como resumir 60 linhas em 30, conforme exigia a diagramação? Aí entrava o copidesque. Ibsen Pinheiro foi um copidesque lendário, antes de se tornar cronista, dirigente e político. Quando comecei a trabalhar ele já era deputado, mas dizem que o texto original ficava melhor após o Ibsen, que nos deixou este ano, desbastar excessos e valorizar o essencial. Pois as reprises de jogos do passado nos dão a chance de reescrevê-los. Não o texto todo, mas algumas linhas ou frases.
É o caso de Rivaldo em 2002. Ele é um injustiçado. Nos últimos 18 anos, falou-se mais em Vampeta do que nele. Tudo bem que as cambalhotas na rampa do Palácio do Planalto e suas boas piadas são de fato deliciosas, mas era um volante reserva. Rivaldo foi um monstro em 2002. Já tinha sido assim em 1998. Em duas Copas, campeão e vice. Não era o camisa 10 clássico, o ritmista que Tite persegue até hoje. Era também agudo. Mas, no time de 2002, era o mais pensador. Nenhum outro carimbava, girava, acelerava, desacelerava ou virava o jogo como ele.
Eis uma das enquetes da semana do Esportes ao Meio-Dia, da Rádio Gaúcha: "Quem foi mais importante no penta: Ronaldo ou Rivaldo?". Felipão acha que foi Rivaldo. Eu votei em Ronaldo. Oito gols em sete jogos, dois deles em final, contra uma Alemanha cujo goleiro era invencível, caso de Oliver Kahn, é um cardápio imbatível. Mas Rivaldo ficou uma casa decimal atrás, talvez até menos do que isso. A começar pela sempre tensa e nunca tranquila estreia. Os turcos saíram na frente.
A virada veio com gol e assistência de Rivaldo. No primeiro, cruzamento estilo passe perfeito para Ronaldo. Depois, ele mesmo batendo pênalti. Na partida mais difícil de todas, contra a Bélgica, o golaço salvador, matada no peito e virada sem deixar a bola cair, é seu.
O placar de 2 a 0 engana. O segundo gol saiu só no finzinho. A Bélgica teria aberto o placar se o árbitro não anulasse um gol de cabeça que, com VAR, mudaria a história. Não foi falta de Wilmots de jeito nenhum. Só o fato de uma enquete assim não ser maluca já dá a importância de Rivaldo no Penta.
Mas então por que ele nunca foi tão valorizado? Por não ser midiático. Rivaldo não passa o tempo todo nas redes sociais, não muda a cor do cabelo, dispensa manchetes por falar mal dos outros e não faz stories se exibindo com roupas de grifes caríssimas. Nunca deve ter visto BBB, que dirá votar no Prior. É um sujeito simples, sem ideias faraônicas de si mesmo, e o show não gosta muito de gente assim. Ainda bem, senão eu estava ferrado em 1998.
Quatro anos antes, em treino da Seleção na cidadezinha de Ozoir-la-Ferrière, minha matéria do dia era sobre Rivaldo. Ele crescia a cada jogo, e sua presença na Copa da França podia ser considerada um milagre. Contra todos os prognósticos, Zagallo e Paulo Paixão acreditaram em sua recuperação após grave lesão. Só que os treinos eram uma guerra.
Exércitos de repórteres do mundo todo se aglomeravam. Era zona mista todo dia, na beira do campo. Além da imprensa nacional, veículos de outros países mandavam alguém para acompanhar o Brasil. E ainda tinha os setoristas só das estrelas – Ronaldo, Roberto Carlos, Rivaldo. Um coronavírus ali criaria uma pandemia em segundos.
No meio da gritaria, Rivaldo me viu e prometeu me atender. "Ufa", pensei. Só que ele esqueceu e foi para o vestiário. Repórter que não cumpre pauta é como atacante que perde pênalti ou goleiro frangueiro. Meu editor era o David Coimbra. "Que vergonha. Demissão certa quando voltar". Dramatizei, que eu sou meio paranóico mesmo. Mas foi a sensação do momento. Eternos 10 minutos depois, Rivaldo surge no túnel do vestiário. Gritos de "Rivaldô!" se multiplicam, atrás de mais uma frase. Então, ele diz:
– Desculpa, gente, mas é que prometi para um repórter lá do Sul que o atenderia depois. Onde ele tá?
Difícil imaginar uma celebridade se preocupando com alguém que nem conhece. O habitual é dar uma desculpa e sair de fininho, fazendo pouco caso. Sua vida não ia mudar em nada se não voltasse e cumprisse o trato, mas a minha sim. Rivaldo me salvou. Não por isso, obviamente, mas é justo que salvemos a sua correta importância na quinta estrela brasileira.