Em um alojamento fora dos padrões de segurança exigidos por lei, 10 pessoas morrerem queimadas é inaceitável sob qualquer ângulo de análise. Com menores de idade entre as vítimas, o nível de perversidade é ainda maior. O que esperar de um país cuja negligência é capaz de matar o seu próprio futuro? Sem Plano de Prevenção Contra Incêndios — ou PPCI, sigla que aprendemos a conviver entre dores e lembranças da Boate Kiss —, o dormitório das categorias de base do Flamengo não poderia estar em uso. Ponto final. Sem vírgulas, contextos possíveis ou explicações. O Secretário da Defesa Civil, Roberto Robadey, definiu o local como "puxadinho": esta parte do Ninho do Urubu não teria documentação.
Não é um episódio isolado. Não houve punição no caso da Boate Kiss. Pior: os pais das vítimas terminaram acusados de calúnia. O mal que matou adolescentes enquanto dormiam nas dependências do clube de maior torcida do país é só mais um sintoma da doença que impede o Brasil de ser um país sadio. Sempre dá-se um jeito. É isso que liga o Ninho do Urubu com a vergonha da reprise em Brumadinho, três anos depois de o mundo assistir estarrecido ao desastre ambiental de Mariana. Não é diferente com as enchentes assassinas e recorrentes do Rio de Janeiro.
A velha história da semana de oito dias — segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo e amanhã — avançou até o mais alto grau de deformação e banalidade. Não pode haver concessão quando se fala em segurança de vidas humanas. Pelo menos neste aspecto, o Brasil tem de tomar vergonha na cara. O empresário que escolhe o sistema barato de barragem para lucrar às custas da morte de inocentes precisa ser punido. Os efeitos da impunidade em casos assim se espalham feito a mais devastadora das metástases. Inócuas discussões entre direita e esquerda sobre privatização, como se o problema primordial fosse esse, beiram a falta de respeito com as vítimas. Além de não resolver nada.
Tivessem os chefões da Vale sido punidos depois de Mariana, quem sabe até suspendendo a licença de funcionamento da empresa e bloqueando bens, nunca mais um executivo de mineradora ousaria empurrar com a barriga obras de proteção em barragens. Os acionistas não têm culpa e seriam lesados. Mas, isso sim, tem solução. A morte, não.
Assisti a um documentário na TV citando um secretário de obras do Rio que alertava para deslizamentos e riscos de acúmulo de água nas encostas. Não recordo o nome dele, mas não importa. Incrível é o enredo. Ele sugeria a remoção das pessoas que morassem nessas áreas e obras imediatas para prevenir que a terra desabasse lá de cima, já que a topografia da cidade aproxima obstáculos naturais de ruas e rodovias.
Era o que alertava o secretário — em 1934. As trágicas tempestades de verão se repetiam há décadas no Rio, sempre com mortes. Toda vez que ninguém é responsabilizado, fica um certeza para o futuro: vai acontecer de novo. É um modus operandi tão atávico que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, nem percebeu a idiotice que falou sobre o terceiro desabamento da ciclovia Tim Maia em três anos:
— Dessa vez, tem de estudar com muuuito cuidado como consertar...
Dá-se um jeito, quem sabe reforçando a estrutura aqui, colocando uma escora acolá. Está na cara que a ciclovia foi um erro. É só destruí-la. Milhões de reais no lixo? Para salvar vidas, barato.
Em 1989, após décadas de brigas, depredações, acidentes, mortes, violência e impunidade no futebol, a Inglaterra deu um exemplo ao mundo. Noventa e cinco torcedores morreram pisoteados ou esmagados em um estádio superlotado, no jogo entre Liverpool e Nottingham Forest, pela Copa da Inglaterra. Peter Taylor, juiz de primeira instância que liderou a investigação das causas, elaborou um rigoroso relatório com normas de segurança aparentemente impossíveis de serem cumpridas. O Relatório Taylor valeu para todos os clubes. Quem não o cumprisse de alto a baixo estava fora. Hoje, a Premier League é a melhor, mais rentável e mais bem organizada liga da Europa.
Há questões complexas a resolver para o Brasil ser um país mais justo e menos desigual. Reforma da Previdência que distribua renda. Combate ao crime organizado. Fim do analfabetismo. Salários dignos aos professores. Dívidas dos estados. Mas acabar com tragédias em bares, prédios, alojamentos, barragens ou estádios por funcionamento fora dos padrões de segurança?
Tenhamos a santa paciência. Não pode ser tão difícil identificar e punir responsáveis. Não tem habilitação adequada dos Bombeiros? Portões fechados. Ah, mas falta só um parafuso. Não interessa. É sim ou não. Burlou, arrumou jeitinho? Reincidiu? Banimento, bens bloqueados, processo, julgamento célere. Do contrário, ali adiante será mais uma barragem ruindo, outra enchente matando ou novo alojamento em chamas. Essa apatia diante de um mal que une tragédias e mata é assustadora.
A pátria amada, mãe gentil, não pode mais ceder diante da vida, único bem inegociável de seus filhos, por razões tão fúteis e de fácil solução.