Por si só, as relações entre jornalistas e entrevistados exibem um natural tensionamento. Nem todas chegam às vias de fato, como a do técnico Oswaldo de Oliveira com o repórter Leo Gomide, da Rádio Inconfidência. O bate-boca deles após o empate entre o Atlético-MG e seu homônimo do Acre viralizou.
Vitaminado pelo gosto de sangue da internet, foi o assunto da semana no futebol. A direção do Galo proibiu Gomide de entrar em seu CT, o que não tem cabimento. Cartola é dirigente, e não dono de clube. O estádio e o local de treinamento não são de sua propriedade. Ele não tem direito de barrar o acesso de um profissional de imprensa legalmente habilitado.
Quem decide se o repórter será fulano ou beltrano é o seu veículo, assim como o cartola contrata o técnico que quiser. Ninguém na Cidade do Galo é obrigado a falar com Gomide. É um direito, embora não seja elegante ou inteligente. Mas proibi-lo de entrar é censura prévia.
O curioso é que, no dia seguinte, o Atlético-MG também tirou Oswaldo do CT. Ele foi demitido. Não por isso, é claro. O Galo não estava jogando nada e a demissão era questão de tempo. Mas é óbvio que o barraco influenciou. Aí vai um breve resumo da confusão.
O técnico foi se exaltando com as perguntas do repórter, acusando-o de perseguição sistemática há algum tempo, e não só naquele momento. Gomide discordou. A temperatura foi subindo até o repórter sair da coletiva. Nesse instante, Oswaldo alega ter ouvido dele um palavrão que rima com baralho. Ofendido, partiu para a vias de fato.
Gomide nega o palavrão. Como ninguém capturou áudio, fica a palavra de um contra o outro. Oswaldo pediu desculpas horas depois em nota, mas reiterou que ouviu o palavrão.
Como não tenho detalhes do episódio, não tomarei partido. A pressão no futebol é cruel, e isto deve ser levado em conta, pelo lado de Oswaldo, ainda que figuras públicas tenham de saber lidar com isso mais do que o cidadão comum. De parte de Gomide, também há atenuantes. O palavrão, se é que ele existiu, pode ter saído no sentido genérico, sem direcioná-lo ao técnico. Como se exclamasse: droga!
A tarefa do repórter é entrevistar, e não brigar com o entrevistado. Gomide é um profissional conhecido em BH. Posso apostar que deve ter ficado bem chateado com o episódio, que foi ruim para ele também.
A imprensa, por definição, precisa ser crítica e oferecer o contraponto para fomentar o debate, mas na outra ponta está alguém cujo compromisso é apenas expor a sua maneira de ver determinada questão. É muito comum esta ou aquela pergunta ser interpretada como ataque ou até insinuação.
Em três áreas este tensionamento se eleva a níveis preocupantes. O primeiro é a política, especialmente em períodos eleitorais. Se você duvida, espera até a corrida presidencial começar. O segundo é a religião. E o terceiro, claro, é o futebol. Um sentimento é comum a estes temas: a paixão. É por isso que candidatos e ideologias, assim como as crenças, mobilizam exércitos que se comportam como torcidas de futebol.
Neste cenário, episódios como o de Osvaldo e Gomide são comuns. O deles foi até suave perto de outros. E não só no Brasil. José Mourinho vive às turras com jornalistas. O holandês Louis Van Gaal já se retirou de coletivas por não gostar de uma pergunta. Dunga rosnou ao vivo para Alex Escobar, na Copa de 2010. CR7 já arrancou um microfone e atirou em um lago.
Então técnico do São Caetano, Jair Picerni rolou na grama com um repórter. Na política, basta procurar no YouTube para ver brigas do gênero em programas de TV. Cito um político só, pela relevância: Leonel Brizola. Há dezenas, centenas de exemplos. A pergunta é: dá para evitar barracos assim? A resposta é: sim.
No futebol, ao menos, é possível. Não digo que sempre, mas vale a tentativa. Quando Paulo Autuori era técnico do Grêmio, escrevi um dicionário de autuoriês, listando os termos cultos que um homem inteligente como ele falava.
Não era crítica. Eu não queria insinuar que Autuori era pedante, até porque não é o caso, e sim reunir e explicar termos estranhos ao torcedor, mas usados por ele com naturalidade. Era uma forma de revelar um traço de seu perfil. Imaginei que fosse um elogio, mas Autuori não gostou nem um pouco.
Em vez de ruminar rancores, como fez Oswaldo com Gomide, ele tirou tudo a limpo comigo reservadamente. Pediu meu contato a Sérgio Schueler, assessor de imprensa do Grêmio à época. Levei um susto ao ouvir aquela voz de Darth Vader. Autuori defendeu os seus argumentos com toda a educação. Estava incomodado, de fato. Fiz o mesmo, jornalisticamente e no mesmo tom.
Ele continuou sem gostar do meu dicionário, e eu a defendê-lo. Não demorou para ele perceber que não havia perseguição alguma. Aceitei a hipótese de não ter me feito entender. Todos erramos e acertamos, embora eu entendesse que tivesse acertado. Mas era só a minha opinião. A dele era diferente. E se ele tivesse razão?
Qualquer mal entendido morreu ali. Agradeci o gesto pelo significado democrático, de respeito com um profissional mesmo diante de algo por ele compreendido como crítica. Autuori disse que achava melhor agir assim nestes casos e deixou uma frase perfeita e que deveria servir de mantra para o Brasil intolerante em vigência: "O diálogo só não resolve o que não tem solução". Nossa relação foi a melhor possível a partir dali.
Não tenho como saber se uma iniciativa assim de Oswaldo era possível no contexto mineiro. Nem se evitaria as cenas de quase pugilato que culminaram em sua demissão. Mas tenho certeza que, ao preferir o silêncio, foi-se qualquer chance de evitar o episódio. Antes de tudo e mais nada, o diálogo. Essa é a lição. Mesmo que não resolva. Só a tentativa já vale a pena.