Um dia antes de o Leandro Staudt, a Kelly Matos e eu levarmos a judoca Mayra Aguiar ao Gaúcha +, programa que estreou esta semana disposto a causar nas tardes da Rádio Gaúcha, o técnico dela me mandou um e-mail de agradecimento. É que eu tinha defendido estátuas para os dois. Na Sogipa ou numa praça de Porto Alegre, seja lá onde for. Antônio Carlos "Kiko" Pereira é pentacampeão mundial. Isso mesmo. Ele soma CINCO medalhas de ouro em Mundial. Duas com a Mayra. A última em Budapeste, semana passada, motivo da sua visita descolada ao estúdio. Nas horas vagas, aliás, quando não está derrubando japonesas no tatame, como na semifinal e na final da Hungria, Mayra é funkeira de descer até o chão.
Mas essa história da única atleta brasileira bicampeã mundial em esportes individuais eu conto outro dia. Voltemos ao e-mail do Kiko, motivo deste texto. Então são os dois títulos da Mayra, outros dois do João Derly e um de Tiago Camilo. Que não é gaúcho, como a Mayra e o João. É paulista, mas para ser campeão do mundo procurou a Sogipa, onde Kiko comanda o projeto de judô do clube. Então, vejamos. Temos, aqui no Rio Grande do Sul, um técnico pentacampeão do mundo e uma judoca jovem, de apenas 26 anos, com um tonel de medalhas.
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Com a carreira que tem pela frente, não é absurdo projetá-la, no futuro, como a maior atleta brasileira de todos os tempos em esportes individuais. E se ganhar o ouro olímpico em Tóquio-2020, na casa do judô? Não é exagero ou bairrismo algum. Hoje, Mayra é a primeira do ranking até 78 quilos. Pois apesar de tudo isso, a parte final do e-mail do Kiko me impressionou:
"Deixa eu abusar ainda mais de ti: continua escrevendo e emitindo opinião sobre o esporte olímpico. Precisamos de jornalistas com a tua visão macro do esporte. Um forte abraço e, novamente, obrigado. Fica com Deus".
Claro que o "jornalista com a tua visão macro do esporte" é uma gentileza do Kiko. Ele é assim com todos. É um cara do bem. O André Silva e o José Alberto Andrade, da Gaúcha, por exemplo, sabem muito mais do que eu de todos os esportes olímpicos, não só de judô, embora eu tenha aplicado lá meus osotogaris quando era piá. O que me intrigou no e-mail dele é o "continua escrevendo e emitindo opinião sobre o esporte olímpico". Um cara que é pentacampeão mundial tendo de mendigar espaço na mídia para o seu esporte. E sabe porque ele pediu, todo cheio de dedos, com receio de ser chato? Porque o Brasil é uma monocultura esportiva.
Falamos muito de futebol e quase nada de outras modalidades. Tem gente que nem sabe direito as regras do vôlei, apesar de as seleções masculina e feminina se banharem em ouro há décadas. Não duvido que a Mayra ande pelas ruas sem ser reconhecida. Agora, que a exposição dela foi muito grande, em razão do bi do mundo, talvez isso seja impossível. Mas daqui a dois meses, será que todos a reconhecerão? E Thiago Braz, campeão olímpico do salto com vara? O nome dele é com s ou com z? Quantos visualizariam o rosto dele agora, mais de um ano depois do Rio 2016? Você o identificaria na rua?
É um círculo vicioso. Como as pessoas só querem saber de futebol, a grande mídia só volta os olhos para outras modalidades em momentos muito específicos, como Olimpíada. Sem divulgação, jamais haverá nem algo perto de popularização. Sem popularização, não tem audiência. Sem audiência, os patrocinadores não investem por não perceberem retorno. Sem dinheiro, nada acontece. O pai de João Derly, a certa altura, teve de vender o fusca da família para bancar as viagens dele em torneios fora do Estado. No Brasil, o patrocínio só vem depois do resultado. Nos países que empilham medalhas olímpicas, ocorre justamente o contrário.
A lógica brasileira, portanto, é perder. É cruel quando um atleta olímpico chega a uma final, sofre a derrota e as redes sociais o chamam de "amarelão". Ou logo se cria a tese do "não adianta: na hora da decisão fracassa". Mas vai ganhar como, cara pálida? O que eles e a Sogipa fazem é nadar o tempo inteiro contra a maré, tendo de alcançar resultados inverossímeis para fidelizarem patrocinadores. E sem sair do Estado. E tendo de mandar e-mail para pedir espaço. Por isso Mayra e Kiko merecem estátuas já: para a gente não esquecer deles nunca mais. E também porque vai nos poupar trabalho. Depois é só pintá-las de ouro, prata ou bronze em Tóquio.
* ZH Esportes