Para quem, como eu, anda desiludido com o Brasil, foi como se uma lufada de esperança balançasse a cortina da janela, despertasse do sono depressivo e depois invadisse a casa toda, varrendo o pó e as teias de aranha do pessimismo. Diante do que se viu na Ilha do Retiro na última quarta-feira, tornou-se quase dever acreditar em dias melhores.
Nem mesmo a decepção com os argumentos em defesa do arquivamento da abertura de processo contra Michel Temer no Congresso, segundo os quais um indício incontestável de crime tem prazo para ser investigado, especialmente se atender aos interesses do acusado e de milhões em favores bancados com o nosso dinheiro, nem isso pode ser mais forte.
Milhares, em um gesto espontâneo, abraçaram simbolicamente o técnico do Fluminense, que enfrentava o Sport. Abel Braga foi vítima da maior injustiça que um ser humano pode sofrer. O destino o condenou a enterrar um filho. O que pode ser mais antinatural do que um pai enterrar um filho? Nada, rigorosamente nada. João Pedro Braga morreu aos 18 anos, no último domingo. Caiu do prédio onde mora, no Rio de Janeiro.
Quando eu soube da tragédia, minha reação foi a mesma, tenho certeza, a de todo pai e toda mãe diante de uma notícia tão terrível. Coloquei-me, ou tentei me colocar, no lugar de Abel por alguns segundos. Minhas pernas tremeram só de cogitar acordar todos os dias sem o Pedrinho. Os músculos da face murcharam. Veio uma vontade enorme de chorar.
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Abel está sentindo essa dor na alma. Optou por vivê-la mergulhando no trabalho, o que é compreensível. Uma onda de solidariedade rara em torno de uma só pessoa se espalhou rapidamente pelo futebol Brasil. O Inter, por ele alçado à condição de campeão do mundo em 2006, jogou contra o Oeste com um #ForçaAbel às costas. Minutos de silêncio gritaram pela rodada. Nas redes sociais, as contas oficiais de vários clubes abriram luto. É possível, talvez, que até os boçais que brigam, depredam e matam em nome da paixão clubística, tenham sido tomados por um tanto de humanidade.
Lembro de uma vez, aqui em ZH, que juntamos os técnicos de Grêmio e Inter em um bate-papo de bar. À luz da civilização parece moleza, mas infelizmente não é bem assim no ambiente cada vez mais imbecilizado da grenalização. É até raro de conseguir. Sempre tem algum aspone que manda contra.
Com Abel e Enderson Moreira, em 2014, foi fácil. Abel, lembro bem, não apenas aceitou na hora como se tornou entusiasta da ideia. Disse que tínhamos de fazer mais vezes e que era parceiro sempre. Fui o mediador do encontro, com a participação de torcedores colorados e gremistas na plateia. E muitas boas histórias contadas em clima fraterno. Adversários, sim. Inimigos, não.
Outros episódios recentes, além da solidariedade a Abel, indicam que existe um Brasil realmente digno. Um país que erra na escolha de seus deputados e senadores, sim, mas o faz com sinceridade de propósito. Erra sem a maldade verificada em certas justificativa de voto pelo arquivamento da denúncia contra Temer. Além das justas reverências gremistas ao ex-presidente Hélio Dourado, que morreu na última terça-feira, a cena de um homem com a camisa do Inter rezando diante do corpo do patrono adversário, no velório, marcou o cerimonial. O Inter baixou a bandeira à meio mastro.
Noutro contexto, mas igualmente positivo no caminho da paz, Cuca dominou uma bola de calcanhar, e depois no ombro, antes de entregá-la ao encarregado do arremesso lateral. Mano Menezes, técnico do Cruzeiro, virou-se em sua direção e começou a aplaudi-lo, surpreso com tanta habilidade de calça jeans e sapato. Torcedores do Cruzeiro repetiram o gesto, no Mineirão. É uma cena prosaica, mas que ajuda a desconstruir a cultura da violência.
Podem me chamar de Velhinha de Taubaté, mas acredito numa fórmula simples para resolver todos os problemas da humanidade, dos conflitos religiosos do Oriente Médio às desavenças de condomínio: a gentileza. Tente, mesmo que não lhe devolvam o gesto. Seja o último a sair do elevador. Dê a vez ao carro que precisa entrar na fila para sair do estacionamento da escola. Acuse que tocou a mão na bola na pelada com amigos. Admita que aquele erro no trabalho é seu.
Não há notícia de vestiário desunido com Abel. Ele não é um habilidoso gestor de pessoas, com um manual cheio de itens debaixo do braço. Ele é só um homem gentil e verdadeiro. Não é à toa que a comunidade do futebol o apelidou de Abelão. Ou de paizão, que surge em qualquer relato sobre Abel.
O destino foi desumano ao arrancar-lhe o caçula dos braços, mas o carinho dos brasileiros nos estádios, muitos da mesma idade do seu João Pedro, mostrou que o seu comportamento em décadas de profissão deu resultado. Gentileza gera gentileza, como diz o profeta. Na dor, Abel ganhou milhões de filhos anônimos. E provou que dá, sim, para humanizar o futebol.