Não sei quanto tempo vai durar.
Mesmo na Argentina, que não considera o tema inóspito e o recebe com naturalidade por uma questão cultural. Trata-se de um país que consome tática há décadas. Tenho mais dúvidas ainda sobre como algo assim seria recebido no Brasil, tão refratário ao diferente e preguiçoso na hora de pensar sob outros parâmetros. Aqui, é bem possível que um punhado não desprezível de senhores ridicularizasse a iniciativa.
É uma revolução, pelo significado do gesto. Jorge Sampaoli, que estreou no cargo tirando a invencibilidade de Tite, ao vencer o amistoso na Austrália por 1 a 0, decidiu realizar o sonho do torcedor em qualquer canto do planeta. Ele quer fazer de cada cidadão argentino um auxiliar técnico. Assim nasceram os
Diários de Sampaoli.
El Pelado Sampa, e aqui pelado é só uma referência à luminosa calvície de seu dono, decidiu contar tudo o que faz no comando da seleção nacional. Ao final de cada treino, ele revela o que pensou, planejou e executou, na teoria e na prática, para aquele dia de trabalho. Os textos são publicados no site da Associação de Futebol da Argentina, a AFA. Ezequiel Scher, um portenho de apenas 26 anos, assessor pessoal de imprensa do técnico que levou o Chile ao inédito título de campeão da Copa América, o ajuda na hora de escrever. E, especialmente, na divulgação dos conteúdos nas redes sociais.
Os relatos são totalmente abertos e públicos para serem lidos, retuitados e compartilhados. Sampaoli sonha com infinitas opiniões, trocas de ideias, sugestões e dicas de escalação. Tem dito que não haverá constrangimentos em acolher os frutos desta tempestade cerebral. Pensa em interagir e, talvez, responder alguns posts. Não todos, claro. Quem sabe os mais emblemáticos. Sua lógica é, ao mesmo tempo, singela e profunda. Se todos os argentinos querem uma seleção nacional forte, por que não embarcarem juntos numa inesquecível e inédita travessia?
Imagine milhões de cabeças matutando como explorar melhor o talento de Messi, se no 3-4-3 que venceu o Brasil ou noutro desenho qualquer.Na impossibilidade de abrir todos os treinos à imprensa, já que não se pode desprezar a necessidade de privacidade com seus jogadores por motivos variados, de jogadas ensaiadas à cobranças verbais mais cabeludas, a solução de transparência encontrada por Sampaoli foram os Diários. Os primeiros rabiscos vieram até com veia literária:
''Como nosso estilo defende uma cultura de jogo que aponta para a racionalidade, nos parece justo divulgar detalhes do que estamos fazendo (...) O objetivo do treino de hoje é posse de bola e recuperação pós-perda. A intenção é dominar. Para a recuperação da bola, só o que nos resta é viajarmos juntos. Para jogar, que nos una o passe''.
Sampaoli listou o que pretendia dias antes de enfrentar o Brasil, após elogiar Tite de todas as maneiras, em entrevista coletiva.
''São três eixos conceituais:
1) Construir um jogo de posição e posse de bola para controlar as ações.
2) Criar espaços internos e externos, com jogadores próximos e outros estrategicamente afastados, para impedir a pressão do rival.
3) Buscar constantemente a superioridade numérica em cada ação.''
Alguém dirá que a teoria, na prática, é bem diferente. Mas os Diários de Sampaoli descem ao operariado diário. Como fazer os jogadores entenderem e mecanizarem tanta tese? Com repetição de exercícios. E suor. Um exemplo, apenas. O que fazer na hora de evitar um contra-ataque, após um passe errado ou simples perda da posse de bola na frente?
"Em um retângulo, separar dois grupos. Um de dez jogadores e outro de seis. Os do grupo de seis têm de recuperar a bola, agrupando-se e definindo qual o momento exato para pressionar quem está com a bola, e recuperá-la".
O império do resultado é cruel. Se a vitória não vier, o espírito de colaboração proposto pelo técnico pode descambar para uma grande vaia virtual, com direito as ofensas covardes dos que se escondem atrás de perfis falsos. Mas o seu gesto é democrático, de quem tem muita confiança no que faz e como faz.
E se a Argentina for para a Copa da Rússia como produto de milhões de técnicos, em vez de milhões de torcedores?
Aguardemos o próximo capítulo dos Diários de Sampaoli.