Ontem tive de pegar um Uber e o rádio do carro começou a tocar uma música antiga do Barão Vermelho. O cara faz as promessas mais absurdas para ficar com a moça, tipo dançar tango no teto de algum prédio, limpar os trilhos do metrô e viajar a pé do Rio a Salvador, o que dá 1,6 milhão de passos, se você considerar cada passo um metro.
É normal você fazer sacrifícios em nome da mulher amada, a paixão leva a esses gestos grandiloquentes e às vezes ridículos. Nada de novo, portanto. Mas há, na música, uma promessa intrigante. É quando ele jura:
"Eu desejaria todo dia a mesma mulher”.
No início, não entendia bem a letra. Parecia-me: “Eu beijaria todo dia a mesma mulher”.
Isso é factível. Você garante a ela que a beijará todos os dias das suas vidas. Perfeito. É até poético. Você pode dizer: “Lá vai a mulher que beijo todos os dias”. Ou ela: “Aí vem o homem que me beija todos os dias”.
Bonito.
Agora, “desejar todos os dias a mesma mulher” não faz parte da natureza humana. O ser humano, depois de conquistar o que desejava, passa de nível. Não que ele desgoste do que obteve. Ele gosta. Ele ama. Ele quer preservar. Mas, como já o possui, não o deseja mais.
Não se trata de ambição, de ganância ou de mau-caratismo. É um processo natural, schopenhauriano, quase físico. É difícil sentir desejo pelo que já se tem. Sinta amor. Sinta respeito. Sinta admiração. Mas o desejo é algo que titila e floresce em outro lugar, independente de todos os órgãos, pensamentos, planejamentos e racionalizações. O desejo às vezes se manifesta contra eles e estraga tudo o que eles estavam prontos a fazer. Simplesmente porque o desejo busca o novo, o que não foi conquistado, o que parece inatingível.
Então, o autor dessa bela música, o Frejat, deveria mudar a letra. Deveria trocar “desejaria” por “beijaria”, que é igualmente romântico e muito mais realista. Frejat, ou seu personagem, dançou tango em lugares inóspitos, caminhou 1600 quilômetros até Salvador, fez as coisas mais loucas, e ela se comoveu, e eles ficaram juntos para sempre.
Agora, eles têm problemas em escolher o colégio dos filhos, em definir o local onde guardarão o papel higiênico, em ver uma série ou o BBB na TV, em contratar ou não a Nelci para fazer a faxina duas vezes por semana. Vivem uma vida normal. Sem arroubos. Mas ainda se gostam. Eventualmente um olha de forma doce para o outro, de vez em quando se amam com carinho e, o principal, ele a beija todos os dias. Não para cumprir qualquer promessa. Não por ter que fazer assim. Ele faz porque faz. Porque quer. Pelo menos um beijo. Todos os dias.