O grande Kasparov disse, certa feita, que as mulheres não têm inteligência para jogar xadrez. Não foi o único Grande Mestre a emitir opinião semelhante. A diferença é que Kasparov não é um gênio louco, como Bobby Fischer, que era alheio a tudo que se passava fora do tabuleiro. Não. Kasparov é um homem sensato, inserido no mundo real.
De fato, nenhuma mulher jamais conseguiu ser campeã do mundo. Há três anos, existiam quase 1600 Grandes Mestres Internacionais, dentre eles apenas 35 mulheres.
Por que isso? Não sei a resposta, mas tenho cá uma tese: nada a ver com capacidades de cognição de cada sexo, a questão é o interesse. As mulheres, mais práticas, mais conectadas com o planeta, têm mais o que fazer do que ficar oito horas por dia estudando a Abertura Ruy López ou a Defesa Siciliana.
Mas, se uma mulher se interessa e se dedica profissionalmente ao jogo, ela pode, sim, alcançar resultados relevantes. Quem o provou foi uma húngara chamada Judit Polgar, que desenvolveu uma feroz rivalidade exatamente com Kasparov.
Judit veio de uma dinastia de enxadristas. Seu pai, Lazslo, ensinou as três filhas a jogar, mas achava que as duas mais velhas é que teriam futuro. Uma noite, essas duas, ele e um Grande Mestre amigo da família estavam analisando um problema que parecia sem solução. Judit, sonolenta, preparava-se para ir para a cama. Então o pai a chamou: “Dá uma olhada nisso, filha”. E Judit, bocejando, resolveu o impasse antes que eles pudessem dizer Cucamonga em húngaro. Foi aí que o pai viu que ela era o craque da casa.
Judit se tornou profissional e bateu vários Grandes Mestres, mas perdia sempre para Kasparov. Um dia, acusou Kasparov de ter cometido uma irregularidade: segundo ela, ele soltou o cavalo em uma casa e o mudou de posição depois. O velho Kaspa jurou que não havia largado a peça e acabou vencendo a partida. Judit ficou furiosa e jurou que um dia o venceria. O que acabou acontecendo. Na final de um importante torneio internacional, Judit jogou como uma tigresa, atacando sempre, sem medo, agressiva, e derrotou Kasparov. Que depois disso, admitiu: “Eu estava errado sobre as mulheres no xadrez”.
Uma grandeza do velho Kaspa.
Judit chegou a ser a décima melhor jogadora do mundo, uma façanha. Ela fez uma apresentação em Caxias do Sul, na Festa da Uva, em 2012, e foi um sucesso. Depois disso, chegou à conclusão da maioria das mulheres: tinha mais o que fazer. E largou o xadrez.
Conto toda essa história para recomendar uma minissérie deliciosa que está sendo exibida pela Netflix: O Gambito da Rainha. É, precisamente, sobre uma menina genial que se torna Grande Mestre de Xadrez e desafia os melhores jogadores do mundo. Que são, obviamente, todos homens.
Você não precisa gostar de xadrez para ver a série. Não precisa nem saber jogar. O drama é envolvente e a personagem é cativante – ela tem um pouco de estranheza, um pouco de sensualidade, um pouco de loucura, um pouco de genialidade. Pode-se dizer que é uma trama feminista, mas sem discursos, sem ativismo, sem grandiloquências, o que é um alívio neste tempo de bandeiras desfraldadas e dedos em riste.
Beth Harmon, a protagonista, é um espírito livre. É isso que mais emociona na história: sua liberdade serena e íntegra. Não há acusações. Não há ressentimentos. Beth vive a sua vida com a naturalidade do bicho e a sua vantagem sobre os outros seres humanos vem justamente disso: da superioridade das almas simples.
É lindo o Gambito da Rainha. Pena o título. A peça, no Brasil, é chamada de “Dama”. Mas, tudo bem, Beth tem mesmo um quê de rainha. Conquistará a coroa? Não conto, veja a série. E depois me agradeça pela indicação.