Uma das últimas músicas de John Lennon leva o título de “Watching the Wheels”. Seria “Observando as Rodas”. No caso, as rodas do mundo. É uma bela canção, como praticamente todas as de Lennon. Ele a compôs depois de um período de cinco anos em que se manteve afastado do chamado “mundo artístico”. Nesse tempo, John Lennon apenas cuidou do seu filho com Yoko, Sean, e do apartamento em que viviam no Edifício Dakota.
Gostava de passar em frente ao Dakota, quando ia a Nova York. Sinto certo fascínio por aquele prédio sombrio. Foi lá, você sabe, que Polanski filmou um dos maiores clássicos do terror, “O Bebê de Rosemary”.
Uma vez, vi uma madame saindo de lá e entrando num táxi amarelo. Era uma senhora elegante, toda vestida de preto. Ela usava chapéu e caminhava com uma dignidade empertigada. Fiquei pensando que poderia ser uma das vizinhas de Rosemary e um arrepio me correu pelos ombros.
Há um porteiro de libré na entrada do Dakota, e tochas guarnecendo o portão de acesso, coisa muito aristocrática. Madonna queria morar lá, mas os condôminos não permitiram. Não querem mais saber de celebridades entre eles. Uma riqueza discreta é mais do que riqueza: é nobreza.
Mas, voltando à música de Lennon, nessa Watching the Wheels ele conta que as pessoas criticavam sua opção por uma vida familiar, que elas tentavam aconselhá-lo a voltar a fazer o que fazia, que elas não entendiam que ele se sentia muito bem assim. Então, Lennon enfatizava que realmente amava ficar apenas sentado “olhando as rodas do mundo girarem”. Ou seja: ele não era mais um protagonista, era um espectador.
Na época em que Lennon lançou esse disco, seu derradeiro disco, li uma entrevista em que ele explicava o sentimento que expressou em Watching the Wheels. Não lembro muito dos pormenores da entrevista, eu a li em 1980, mas lembro que, já na primeira pergunta, o repórter quis saber o que ele andava fazendo nos últimos cinco anos, e Lennon respondeu:
“Pão”.
Ele fazia pão. E cuidava do seu pequeno filho e jantava em família e talvez até visse TV à noite. A nova vida de Lennon era pacífica e boa. Uma vida simples, que qualquer cidadão, sem muita fama ou muita grana, pode levar. E foi essa vida que o salvou. “Salvou-o de quê?”, perguntará o percuciente leitor. Responderei: salvou-o de si mesmo. Da opulência que não é fortuna, é excesso. Dos risos que não são de amizade, são de bajulação. Dos prazeres que não trazem felicidade.
Lennon podia morar em frente ao Central Park, num edifício que tem o topete de rejeitar Madonna. Lennon podia ter a mulher que quisesse, por mais rica, bela ou famosa que fosse. Lennon podia fazer o que bem entendesse. Mas ele só queria fazer pão em casa, cuidar do filho, jantar com sua mulher e observar as rodas do mundo a girar.
Esse movimento de Lennon, indo de beatle “mais famoso do que Jesus Cristo” a pai de família, repete o movimento que muitos brasileiros fazem hoje em dia e que, de certa maneira, foi responsável, em parte, pela eleição de Bolsonaro. Que movimento é esse? Contarei na próxima crônica.