Um dia, depois que tocou a campainha que indicava o fim das aulas no Colégio Piratini, a professora Maria Antonieta, de português, me chamou de canto:
“David, espera um pouco. Quero falar contigo”.
Estremeci. A professora Maria Antonieta tinha fama de braba. Se precisasse rodar alguém, rodava sem dó. Fiquei fincado na frente do quadro negro, esperando que os outros saíssem. E eles, enquanto iam embora, me lançavam olhares de compaixão:
“Ralou-se, o David”.
Aqueles momentos de suspense me torturavam. Sentia vontade de gritar: “Fala logo, professora! Acaba comigo de uma vez!” Mas não gritei, não falei, não tugi, não mugi. Permaneci em pânico silencioso, até que a sala esvaziou e ela ordenou, séria:
“Vem cá”.
Fui, arrastando minha angústia pela sala. E ela:
“Tu sabes escrever. Tu tens estilo. Mas és péssimo em gramática. Vou te ensinar gramática, certo?”
Respondi “certo”, claro, mas saí da escola sem saber o que ia acontecer. Teria aulas particulares, ou coisa que o valha? Nas aulas seguintes, entendi. A professora dava um exercício e, quando todos os outros estavam trabalhando, dedicava uns 15 minutos só para mim. Fez isso durante algumas semanas, ao cabo das quais, por Deus, compreendi a lógica da gramática da última flor do Lácio, inculta e bela. Foi uma luz. Adquiri segurança. Passei a escrever com mais fluência e gosto, tanto que meus colegas identificaram a evolução e passaram a pedir que escrevesse as redações para eles. O que eu fazia com prazer, como uma espécie de desafio da capacidade criativa.
Certo dia, escrevi as redações de dois colegas, o Ivan e o Édson. Uma semana mais tarde, na hora de dar as notas, a professora anunciou:
“Eu sei que dois alunos pediram para um outro escrever as redações deles”.
Eu, o Ivan e o Édson nos entreolhamos, assustados. Ela nos reprovaria, era certo que nos reprovaria. Seria o fiasco público. O opróbrio. Então, depois de uma pausa tensa, Maria Antonieta sentenciou:
“Não vou revelar os nomes, mas vou dar zero para os que não escreveram e 10 para o que escreveu”.
Ganhei meu 10, meus amigos ganharam zero e a professora nunca mais falou no assunto.
Corta.
Há uns três ou quatro anos, estava contando essa história em um bar, na praia, quando entrou um grupo musical de chilenos, daqueles que fazem apresentações de rua. Entre eles estava... o Ivan! Que coincidência! Nos abraçamos e, antes que o apresentasse para o pessoal da mesa, ele brincou: “Eu sou músico hoje por causa dele, porque levei zero numa redação que ele escreveu!”
Depois, rimos muito lembrando da professora Maria Antonieta. Aquele trabalho extraordinário que ela fez comigo, só poderia tê-lo feito de forma presencial, em aula, olhando no olho do aluno. Por isso, por melhores que sejam as aulas on line, este é um ano praticamente perdido para os alunos do ensino básico e fundamental.
Por que, então, voltar às aulas agora e arriscar um novo e mais agressivo surto do coronavírus? Salas de aula são talvez os maiores focos de contaminação da peste. A educação de primeiro e segundo graus não pode ser feita por meio de gambiarras, porque ela é a mais importante, é ela que forma e transforma o estudante. Sou, inclusive, a favor de que professores de ensino básico e fundamental ganhem mais do que os universitários. Mas esse é outro assunto. Por ora, quero dizer que sou veementemente contra a volta às aulas neste ano. Que as aulas on line continuem para dar reforço aos alunos, mas que 2020 seja apagado do currículo escolar. Que o ano letivo seja retomado em 2021, com toda a segurança.
Falo como pai preocupado com meu filho, como cidadão preocupado com a saúde da comunidade e como um velho aluno agradecido a uma grande professora.