Nós dirigíamos bêbados, essa é a verdade. Não conto isso com orgulho. Ao contrário, sinto vergonha. Perdi bons amigos por causa dessa temeridade criminosa da minha geração.
Vou lembrar de um único caso.
Numa madrugada de domingo do ano de 2000, eu dormia em meu apartamento na Rua Portugal e o telefone tocou. Obviamente, acordei sobressaltado. Eram cerca de 5h. Quando o telefone soa num horário desses, nunca é coisa boa.
Não era.
Do outro lado da linha, o então chefe da Diagramação da Zero Hora, Daniel Dias, informou, tentando pingar tranquilidade na voz:
— O Ricardo Carle sofreu um acidente... Parece grave.
Toquei para o Pronto-Socorro. Lá, descobri que meu amigo e colega Ricardo Carle havia sido atropelado na frente do Bar do Beto, na Venâncio Aires, por um motorista que fugira do local sem prestar atendimento.
— Provavelmente estava bêbado — concluiu o Daniel Dias.
Sim. Ele estava bêbado. Se não estivesse, pararia para levar o Ricardo ao hospital, que se situa a poucas quadras de distância.
Os médicos que atenderam o Ricardo conseguiram, com muita habilidade, salvar sua vida, mas ele jamais voltou a ser o mesmo. Durante seis anos, meu amigo ficou preso à cama de doente e só conseguia se deslocar em uma cadeira de rodas empurrada por outra pessoa. Ele mal falava, e não sei se tinha real consciência de seu estado. Era triste vê-lo daquele jeito, ele que era um jornalista tão brilhante, tão inteligente e tão produtivo. Em 2006, o Ricardo morreu, e foi até um alívio, porque os seus anos de sobrevivência foram anos de sofrimento.
Perdi um grande amigo e o Brasil perdeu um grande intelectual apenas porque alguém saiu para se divertir, bebeu e resolveu voltar para casa dirigindo.
Vi, dias atrás, uma estatística liberada pelo Detran informando que 94,7% dos condutores de veículos que morreram em acidentes ocorridos em madrugadas de domingo, no ano passado, tinham álcool no sangue. Madrugadas de domingo, como aquela em que o Ricardo foi atropelado.
Essa estatística apresentou outro dado, para mim surpreendente: levando-se em conta a faixa etária dos mortos no trânsito com álcool no sangue, 36,6% deles eram jovens de até 24 anos e 47,9% tinham entre 45 e 54 anos de idade.
Esse dado mostra que os jovens gaúchos reúnem mais compreensão acerca dos perigos de beber e dirigir do que os marmanjos. O que decerto tem muitas causas. Por exemplo, a nova facilidade do transporte por aplicativos e a educação para o trânsito nas escolas. Mas há ainda uma causa tipicamente gaúcha para essa evolução: o trabalho do casal Diza e Régis Gonzaga. São eles os mentores da Fundação Thiago Gonzaga e do Vida Urgente, que procuram, exatamente, formar consciência a respeito da ação perigosa e criminosa que é beber e dirigir.
Thiago, o filho de 18 anos de Diza e Régis, morreu em um acidente de trânsito 10 anos antes daquele que vitimou o Ricardo Carle. Os dois poderiam submergir em seu padecimento, poderiam se tornar revoltados, poderiam passar o resto dos seus dias se martirizando. Mas eles fizeram o contrário. Eles se reergueram. Diza e Régis disseram para si mesmos que não queriam que outros pais sofressem o que eles sofreram. E foram em frente. E trabalharam por essa causa.
Nunca vamos saber quantas vidas eles salvaram nesses 23 anos. O trabalho de prevenção é assim. Não aparece, porque seu sucesso não é fazer com que aconteça, é fazer com que não aconteça. Mas a sociedade gaúcha deve a esse casal todas as homenagens e todos os agradecimentos. Porque eles realizaram uma rara façanha. Eles fizeram o que poucos no mundo conseguem fazer. Eles transformaram uma imensa dor em imenso amor.