Vi na rua um cara igual ao Claudinho da Microfilmagem. Pequeno como ele, que o Claudinho da Microfilmagem mal passava do metro e meio, e com um bigodão preto pendurado debaixo do nariz, que é onde os bigodões costumam se alojar. Mas o mais importante: ele parecia bem-humorado. O Claudinho da Microfilmagem era muito bem-humorado.
Um exemplo de sabedoria, o Claudinho da Microfilmagem. A vida dele era toda atrapalhada. Tinha três empregos, todos ruins. O melhor era na Microfilmagem do Estado, onde eu era estagiário. Mas não era bom o suficiente para que o Claudinho desse realmente importância ao que fazia. Ele estava sempre faltando. Aparecia para trabalhar, no máximo, três dias por semana. Arrumava lá uns atestados, pedia desculpas aos chefes e faltava de novo.
Além de três empregos que lhe pagavam mal, o Claudinho da Microfilmagem tinha três mulheres que o tratavam mal. Não que ele fosse exatamente um bígamo. Acho que uma ou duas eram ex-mulheres, não lembro direito, mas sei que ele estava eternamente envolvido com os problemas delas, fugindo delas, dando explicações a elas.
Um dia, o Claudinho apareceu na Microfilmagem todo machucado, o braço enfaixado, o olho roxo, a pele lanhada em diversos pontos.
– Mas o que que aconteceu, Claudinho??? – me espantei.
Ele havia bebido um pouco além da conta no fim de semana e caído da bicicleta e rolado barranco abaixo.
– Vou lá fumar pra relaxar um pouco – avisava.
Na Microfilmagem era proibido fumar. Então o Claudinho se trancava no banheiro e acendia logo três cigarros, fumava-os todos de uma vez. A fumaça não se continha no banheiro e esquivava-se pelas frestas da porta e a exatora-chefe ia lá bater:
– Claudinho! Claudinho! Tu está fumando, Claudinho!
– Nãããão – a voz dele vinha lá de dentro. – Estou defecando…
Eu lamentava que o Claudinho fosse trabalhar tão bissextamente, porque ele era muito divertido, muito leve, o ambiente ficava mais agradável com ele por perto. Nunca se queixava de nada, o Claudinho, e, olha, ele colecionava razões para se queixar. Sua vida era confusa, suas condições eram precárias, mas ele transformava os problemas em piadas. Assim, a vida dele se tornava boa.
Sabe qual era o segredo do Claudinho da Microfilmagem?
Aceitação.
Os torcedores do futebol ou da política, quando querem humilhar um adversário derrotado, aconselham:
“Aceita, que dói menos”.
A aceitação das vicissitudes como parte da vida torna viver mais suave. A vida fica mais fácil de ser vivida.
É um deboche, óbvio, mas há aí também uma verdade filosófica. A aceitação das vicissitudes como parte da vida torna viver mais suave. A vida fica mais fácil de ser vivida. O Claudinho se ria das suas dificuldades e, desta maneira, se não as vencia, pelo menos as contornava.
Dias atrás, escrevi sobre Marco Aurélio, filósofo que era imperador romano nas horas vagas. Mil e quatrocentos anos antes de Spinoza, Marco Aurélio desenvolveu uma forma spinoziana de encarar a existência. Possuía, Marco Aurélio, o que se chamaria depois de visão holística. Acreditava que existia alguma inteligência misteriosa por trás da vida, porque havia lógica na natureza. Cada pedaço fazia parte do todo e, sendo assim, tudo era uma coisa só. Por isso, Marco Aurélio entendia que as contingências e as dores de existir compunham o próprio processo de existir. Ele escreveu:
“Equanimidade é a aceitação voluntária daquilo que a natureza do todo te destinou. Tudo que harmoniza contigo harmoniza comigo, ó universo. Nada que para ti esteja em tempo é muito cedo ou muito tarde para mim”.
Talvez o Claudinho da Microfilmagem não compreendesse esse parágrafo, se o lesse, mas era isso o que ele fazia. Nunca mais o vi, mas espero que ele continue sendo o sábio que era, esteja onde estiver. Espero que ainda leve a vida de acordo com a intuição popular, entendendo que, quando aceitamos, realmente, dói menos.