Hoje ninguém mais sabe quem foi o Boró. Chamava-se Mauro Toralles, e morreu na noite de sábado passado, no conforto do lar, em Eldorado do Sul.
Durante mais de 35 anos, o Boró foi um dos principais editores do Esporte de Zero Hora. Repare: escrevi que foi "um dos principais", nunca "o" principal.
Por quê?
Porque não queria.
O Boró não gostava de exposição. Ficava feliz se pudesse se homiziar em seu canto da redação, atrás do terminal, com seus diagramas e seus planos para as grandes coberturas da editoria.
Todas as vezes que um repórter da rádio ou da TV entrava na redação para entrevistar os jornalistas, o Boró dava um jeito de sumir. Não sei como ele conseguia sair da redação sem que a gente notasse, mas não tinha erro: se um microfone ou uma câmera aparecessem, o Boró desaparecia.
Apenas uma vez, uma só vez, o Boró foi surpreendido por uma repórter da TV, que, incauta, apontou-lhe o microfone e fez uma pergunta. Fiquei olhando a cena, curioso para ver a reação do Boró. Ele suava. Por Deus, suava. Pensei que fosse desmaiar, mas conseguiu terminar uma frase e dar a entrevista por encerrada.
Era um tímido.
O Boró falava baixo com aquela sua voz grave e fazia movimentos discretos com aqueles seus dedos bem finos, quebradiços, como se fossem de menino. Quem o via tão discreto talvez pensasse que não era homem de opinião. Grave engano. O Boró observava tudo detrás da sua barba veneranda e de tudo tirava um parecer acurado.
Por isso, ele foi um dos meus mais importantes aliados durante os 15 anos em que fui editor executivo de Esportes da Zero Hora. O Boró era o meu imediato, o meu copiloto. Não tomei uma única decisão de relevância, nessa década e meia, sem ouvi-lo. Podia até não fazer o que ele sugeria, mas sempre ponderava a respeito. Eu consultava o Boró até em assuntos pessoais, e não foram poucas vezes em que ele ajudou a me desvencilhar de enrascadas.
Essa qualidade de conselheiro sensato não era percebida e explorada só por mim. Os repórteres da editoria, sobretudo os jovens, procuravam o Boró e bebiam sofregamente da sua experiência. E ele gostava de fazer isso. Era visível o prazer que o Boró sentia em adotar um novato como pupilo e mostrar-lhe o bom caminho da reportagem.
Todas essas tarefas o Boró exercia com humor tão leve quanto requintado. Suas piadas eram sutis, porém certeiras. Suas observações, delicadas, mas contundentes.
Uma vez, em meados dos anos 70, ele levantou a cabeça e viu um jovem repórter entrando na editoria de Esportes pela primeira vez. Era um tipo magricela, de cabelo lambido e desalinhado, de pernas compridas e desajeitadas.
– Parece o Peninha – comentou o Boró, referindo-se ao primo do Pato Donald, que é repórter de A Patada.
Ele era assim: jogava luzes sobre os outros, e se mantinha na sombra. Por isso, hoje ninguém mais sabe quem foi o Boró.
O apelido pegou na hora e grudou no personagem pelo resto da vida. Tenho cá uma tese: Eduardo Bueno seria muito menor, se não tivesse se tornado também o Peninha. Indiretamente, o Boró tem uma parcela de responsabilidade pela fama do Peninha.
Ele era assim: jogava luzes sobre os outros, e se mantinha na sombra. Por isso, hoje ninguém mais sabe quem foi o Boró. Mas eu sei. Todos os que conviveram com ele sabem. Sabemos, nós, que ele foi grande, que foi generoso e que foi uma pessoa suavemente doce. Sabemos que o mundo era melhor, quando o Boró estava por perto. Sabemos como é triste saber que não o teremos mais entre nós.