O humorista Antonio Tabet, do Porta dos Fundos, cunhou, dias atrás, a frase definidora do nosso começo de século:
“Saímos da era do ‘todos são inocentes até que se prove o contrário’, passamos pelo momento ‘todos são culpados até que se prove o contrário’ e, finalmente, chegamos ao tempo do ‘quem eu gosto é inocente e quem eu não gosto é culpado, mesmo que se prove o contrário’”.
Trata-se de uma realidade bem brasileira, mas não é exclusividade nossa. Há outros pedaços do mundo que estão assim. Os Estados Unidos, inclusive.
Tome o exemplo mais divertido: os terraplanistas. Você não conseguirá convencer um terraplanista de que o mundo é redondo. Não adianta vir com dados e argumentos, ele também terá seus dados e argumentos. Qualquer um, se tiver disposição, pode jogar uma discussão para o infinito e além, se a intenção for vencer o debate em vez de descobrir a verdade.
Vencer debates é fácil. Você não precisa nem sequer analisar o argumento apresentado. Basta puxar o assunto para um lado ou para outro, desviar, fazer um contorno, dar sempre a última palavra. Ou ironizar. Ou desclassificar o “oponente”. Mas isso é cansativo. E vazio. Porque não existe campeonato de ideias. Você não tem de “derrotar” uma pessoa quando ela pensa diferente, a não ser que os dois sejam candidatos ao mesmo cargo. O ideal, quando você conversa com outros seres humanos, é que a interação gere luz. “Fiat lux!”, como está escrito no gênesis do Gênesis. Aí você vê as coisas sob outra perspectiva e diz: “Eis uma verdade que eu não tinha enxergado!”. E fica feliz porque aprendeu.
Quando alguém lhe mostra algo que você ainda não tinha visto, você é que cresceu; o outro ficou do mesmo tamanho. Se você entende que o outro tem razão e muda o seu pensamento, você ganhou com o debate.
Mas, para que isso seja possível, para que você e a sociedade melhorem, é preciso boa vontade. Aí está uma qualidade pouco valorizada, mas ela é indispensável. Tem a ver com tolerância. Com sensatez.
Lembre-se: sua mente tem de ser exercitada tanto quanto seus glúteos e suas panturrilhas. Os três, mente, glúteos e panturrilhas, são importantes.
Para me ajudar, vou pegar emprestado o trecho de um livro de Kant. Esse metódico e levemente neurótico professor alemão foi um dos maiores filósofos da História, mas seu texto é pesado. Outros pensadores, como Schopenhauer e Freud, escreviam com mais graça. Por isso, vou colher de Kant um único parágrafo, o primeiro de Fundamentação da Metafísica dos Costumes, para mostrar como é importante esse predicado do qual falo. Vale também para você treinar a sua capacidade de interpretação de texto. Lembre-se: sua mente tem de ser exercitada tanto quanto seus glúteos e suas panturrilhas. Os três, mente, glúteos e panturrilhas, são importantes. Um parágrafo só. Se você não entender, leia de novo. Vamos lá:
“Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade. Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis, mas também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama caráter, não for boa. O mesmo acontece com os dons da fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a saúde, e todo o bem-estar e contentamento com a sua sorte, sob o nome de felicidade, dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo desanda em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir e lhe dê utilidade geral, isto sem mencionar o fato de que um espectador razoável e imparcial em face da prosperidade ininterrupta duma pessoa a quem não adorna nenhum traço duma pura e boa vontade nunca poderá sentir satisfação, e assim a boa vontade parece constituir a condição indispensável do próprio fato de sermos dignos da felicidade”.