O Ramirez do Chico foi Lula. O Uruguai do Chico foi o PT. O Chico soturno e murcho sentado atrás de grandes óculos escuros ao lado de Lula, no julgamento de Dilma, o Chico que enviou um CD com dedicatória a Maduro, depois de jogar bola com os líderes do MST, esse não era o Chico de Anos Dourados ou Olhos nos Olhos. Não. Esse era o Chico que descia a bundadas a escadaria do vestiário do Maracanã.
Decepcionou-me o Chico petista, nem tanto por ele ser petista. Chico poderia ser o que bem entendesse, votar em quem bem entendesse, iludir-se com quem bem entendesse. Decepcionou-me o fato de um artista desse jaez vincular-se de forma tão estreita a um grupo político.
Chico deveria estar acima disso. Deveria estar acima "deles". Que tivesse simpatia pelo PT, que não concordasse com o impeachment de Dilma, que gostasse do Maduro. Vá lá. O problema foi a forte associação da sua imagem com políticos. Dos políticos, o homem que pensa pode até gostar, mas olhando assim de longe, meio que desconfiado, sabendo que eles podem aprontar.
Ao se associar a políticos, Chico sofreu uma injusta inversão: o Chico poeta ficou abaixo do Chico do PT.
Ora, Chico Buarque de Hollanda é muito maior do que o PT. É muito maior do que Lula.
O PT, hoje, é o PDT de Brizola, um partido que serve a um único homem. O PT existe para tentar impedir que Lula vá para a cadeia. E Lula, apesar de todo o fanatismo, irá para a cadeia, não tem como não ir. Já a obra de Chico continuará impávida e bela para a posteridade.
O próprio Chico disse, certa vez, que suas músicas políticas são "datadas". Talvez tenha razão. A política é datada. A política é a contingência.
A arte, não.
A arte é perene. Pelo menos a grande arte o é.
Não são raros os artistas brilhantes que se atrapalham intelectualmente.
Rudyard Kipling, escritor genial, prêmio Nobel de Literatura, autor de O Livro da Selva, em que surge o imortal personagem do menino Mogli, era racista. Kipling escreveu um poema, O Fardo do Homem Branco, que os americanos usaram para justificar a teoria imperialista do Destino Manifesto.
O filósofo Martin Heidegger era nazista de ficha no partido.
Outro filósofo, Louis Althusser, estrangulou a mulher até a morte.
Enfim, você pode admirar a obra e fazer restrições ao autor.
Eu poderia, quem sabe, fazer essa abstração no caso do Chico. Mas, não. Admiro Chico também como pessoa. Sei que ele é boa gente. Até já joguei bola com ele! Chico gosta de uma cervejinha, de uma conversa amena com os amigos, de olhar as pernas de louça da moça, mesmo que não possa pegar. Chico gosta de futebol. Chico também era admirador de Rivellino, porque torce pelo Fluminense.
Chico é bom camarada, ninguém pode negar.
E mesmo bons camaradas e compositores geniais cometem erros.
Não gosto da imagem do Chico ao lado de Lula, não gosto de pensar no Chico homenageando Maduro, mas decidi que isso não tem importância. O que tem importância é o novo CD do Chico. Comprá-lo-ei (olhaí, Michel!). Vou ouvi-lo. E, certamente, ficarei embevecido. Há muita coisa muitíssimo maior do que a rasteira discussão da política brasileira.